JORNALEGO
ANO III - Nº 94, em 10 de
Fevereiro de 2005.
Conto
antigo, reformado, com dedicatória original.
BATISMO LAICO
Para Luizin Pimenta
Glaudomiro,
ao ulrapassar meio século de vida – portanto tardiamente – passou a rechaçar os
ensinamentos da sua educação religiosa e tudo que fosse divino, espiritual,
imortal, eterno, enfim, essas concepções mitigadoras da tragédia humana. No
mínimo, fora uma decisão corajosa para quem já tinha dobrado o cabo da boa
esperança. Sim, porque prudência e bons costumes recomendavam que ele fosse
mais cauteloso, não esnobando o outro mundo. Sabe-se lá!
Em
suas palavras, "convertera-se" ao ateísmo, embora considerasse que o crente e o
ateu são produtos do "inefável mistério da fé", como nos versos de um canto de
procissão. Nenhum dos dois pode provar nada. Filosoficamente, portanto,
rotulava-se agnóstico.
Passou a abominar todo tipo de ritual, cerimonial e liturgia da religião. Com a
forte oposição de sua Ana, com quem se casara há trinta anos no padre e no juíz,
passou isso para seus filhos, Darly e Cely, tendo logrado um espetacular êxito.
Tanto
é que eles, apesar de batizados na Igreja Católica e terem feito a única
comunhão, também repelem qualquer tipo de religião ou pensamentos idealistas, no
mau sentido da palavra. Só admitem cerimônia de casamento com o objetivo egoísta
de montar casa com os presentes recebidos.
- "Só
o casamento protocolar leva as pessoas a presentear", dizia Darly, imitanto a
voz macabra de Nelson Rodrigues, de quem era fã, como se essa fosse uma de suas
frases célebres. Do tipo: "é preciso ser muito cínico para um homem comemorar
suas bodas de prata" ou "a viuvez é um bilhete de loteria premiado".
Numa
conversa de Mimiro com os filhos, chegou-se a conclusão que até o vernáculo não
favorece a união de duas pessoas via casamento. Vejam: nubentes, cônjuges, humm!
Os nomes se tornam mais feios ainda para os amantes fora do casamento, tais como
teúda, manteúda, concubina, comborço, amásia e outros que estão dormitando nos
dicionários e no vocabulário dos advogados a espera de ações de divórcio.
Vai
daí que Mimiro e Aninha recebem a
visita dos filhos e alguns amigos, todos moradores do Rio de Janeiro, para
passar as festas de fim de ano com eles na aprazível casa de Manguinhos, uma
praia a pouco mais de dez quilômetros ao norte de Vitória, onde têm uma casa de
veraneio.
Cely veio
acompanhada do namorado e Darly da mãe do seu filho Francisco, de um ano de
idade, também presente, é claro. Mimiro costumava dizer que era avô solteiro,
pois os pais do seu neto não se casaram. Nem no civil, tampouco no religioso.
Dois outros
casais compunham a comitiva. Luizinho e Lúcia, amigos dos coroas; o outro par,
mais novo, dos pais do Chico.
No
mesmo dia da chegada, ainda pegaram uma praia e depois, moquecas de peixe
(robalo fresquinho), de camarão e de banana-da-terra! Cada uma em sua panela de
barro. Uma outra vinha com pirão feito com a carne desfiada da cabeça e do rabo
do peixe. Mimiro, o chef, responsável pelas iguarias, era uma figura
gaiata circulando de chapéu alto de mestre-cuca e avental estampado com
caranguejos e lagostas. Sob o efeito de algumas doses de uísque, vermelho e
alegre, comandava o ajantarado. Aninha alimentava o neto que cambaleava de sono.
Terminada a refeição, a lavagem de pratos e panelas ficou a cargo de uma
maratimba nativa. Enquanto os convivas procuravam as suas camas, Mimiro
refugiou-se com Luizinho na sombra da varanda que dava para o mar. Não se sabe
porque, confidenciou, alardeando como se isso fosse uma grande conquista do
pensamento racional ocidental, que o Chiquinho não ía ser batizado, rompendo
assim com uma arraigada tradição da família.
Para um
ateu-novo e seus descendentes de mesmo credo seria inconcebível ouvir um
padreco qualquer, com sua conivência, perguntar aos eventuais padrinhos do Chico
se, em nome do pequeno, rejeitavam Satanás e se comprometiam a fazê-lo seguir os
mandamentos da Santa Madre Igreja. Pior que tudo era aceitar uma religião que só
admite o sexo no casamento e com o único objetivo de procriar. Seria concordar
com a proibição do uso de anticoncepcionais, mesmo depois do casamento. Se por
acaso a mulher engravida sem querer, não pode abortar, se quiser. Não é dona de
seu corpo.
Luizinho, mineiro, psicólogo, respirou fundo e com os seus olhos claros,
esbugalhados e flamejantes, grandes holofotes em rosto de barba grisalhando,
dedo em riste apontado para Mimiro, soltou seus raios trovejantes sobre o
encurralado interlocutor.
–
Isso é a maior besteira que eu já ouví partindo do "senhor". Aquele "senhor" era
cheio de veneno, ironia e desprezo. Igualzinho àquele "doutor" usado por garçons
ou flanelinhas, quando não estão levando muito a sério o burguesão.
– Uma
booosta de decisão! Imbecilidade, disse com carinho. Certos
rituais utilizados pelas religiões são originários de necessidades do
relacionamento humano. O que é o Natal senão o rito religioso do nascimento? E o
casamento, as cerimônias da morte, senão marcos dos momentos mais significativos
da vida em comum? Ritos de passagem. Assim como essa nossa moqueca pode ser
considerada a comunhão que festeja a nossa amizade e a possibilidade desse
encontro. Esses eventos marcam as fases da vida da gente de forma indelével.
(Desculpou-se pelo indelével). O batismo, por exemplo, é o reconhecimento e
prova da amizade dos pais da criança por um casal, escolhidos como padrinhos,
para estabelecer uma relação especial com o afilhado e constitui ainda uma
delegação a essas pessoas para cuidar do pelo filho na sua falta ou ausência.
Mimiro a princípio relutou em aceitar esses pontos de vista, que lhe pareceram
muito conservadores e religiosos. Quedou-se na rede, pensativo, e forçou a
mudança de assunto. Ainda deitado, falando de outras coisas, lembrou-se dos
fortes laços que Aninha e ele mantêm com seus afilhados. A alegria de revê-los,
o interesse em acompanhar suas vidas, os presentes especiais de Natal e de
aniversário.
Naquela mesma noite Mimiro falou com os pais do Chico, que foram ainda mais
rápidos do que ele na compreensão do assunto e na aceitação da idéia do
batizado. O casal amigo que lhes acompanhava já tinha sido eleito e convidado
para apadrinhar o Chico.
Na
véspera do Natal, a festa começou cedo, logo que terminaram os noticiários da
televisão, mostrando milhares de lâmpadas caindo do alto dos prédios dos
Ministérios e do Congresso Nacional em Brasília, a sede de um banco em Curitiba
transformado em palco de um coral infantil, Nova York, Roma, Londres e Paris
feericamente iluminadas.
Antes
mesmo da meia-noite, as casquinhas de sirí já tinham sido devoradas, do badejo
assado sobraram as espinhas e já se atacavam os bombons da terra e os quindins
feitos em fôrmas de louça arredondadas, que Aninha tinha herdado de sua mãe.
Chico ainda relutava em dormir.
Foi
então que Mimiro, levantando-se solenemente, tirando com uma faca um belo som do
cálice de cristal à sua frente, disse:
–
Meus amigos. Peço a atenção de todos. Quero aqui celebrar, a pedido de meu filho
e de sua mulher o batizado do Chico. Recebi essa incumbência depois de
refletirmos sobre o que nos disse o amigo Luizinho sobre o batismo. O
significado desta cerimônia é por todos nós sobejamente conhecido, fruto da
discussão e reflexão que tivemos sobre o assunto.
– Ao
casal de padrinhos, apresento-lhes o seu afilhado. Olhem para ele e olhem por
ele. Em nome do pai – meu filho – da mãe, da tia, do avô, da avó, dos nossos
amigos aqui presentes, desta terra abençoada do Espírito Santo, eu o batizo, meu
querido Chico. Que a vida lhe seja feliz e prazerosa. Que sua comunidade e seu
mundo sejam igualmente felizes. Com o sal das lágrimas que agora verto unto a
sua testa e lhe desejo vida longa e prole saudável. Sobre sua cabeça –
acariciando-a – deposito gentilmente nossa transcendência.
Sem
dar tempo a qualquer reação de regozijo por parte dos presentes, Darly
interveio, dando um passo para dentro da rodinha que se formara, abraçado com
sua mulher.
– Pai
e mãe! Queremos fazer uma comunicação sobre um assunto que todos os demais já
sabem. Decidimos nos casar, vamos morar juntos e juntos criar o Chico. Agora,
pedimos a você, pai, que celebre também nosso casamento. Aqui e agora.
Passados poucos minutos da cerimônia, depois da troca de presentes, de
urras e vivas, beijos e abraços, depois dos fogos que espocaram pelos lados de
Jacaraípe anunciando a meia-noite, depois que Chico dormiu, Mimiro beijou e
abraçou Aninha de forma carinhosa. Sem se despedir dos demais afagou a barba de
Luizinho, deu-lhe um beijo na testa e recolheu-se ao quarto. Tirou as sandálias,
deitou-se de bermudas e de camiseta, que ganhara de presente, com a foto de
Chico estampada no peito e imediatamente mergulhou em sono profundo com a
sensação que acabara de receber algum tipo de unção.