JORNALEGO
ANO III - Nº 90, em 30 de
Dezembro de 2004.
Crônica-Ensaio
NATUREZA VIVA
Estive, pela quarta vez, no Acre,
visitando familiares. Nas oportunidades anteriores me dediquei a conhecer Rio
Branco, seus arredores e as características do Estado, tendo me deslocado até a
Bolívia. Nas seguintes continuei as andanças, conheci Xapuri e me informei mais
sobre a bela história das conquistas daquela gente. Desta feita foi um pouco
diferente. Fui na temporada das chuvas – no inverno deles que, aparentemente,
começou mais cedo este ano – fiquei fora da zona urbana da capital e ali me
quedei numa chácara, dedicando-me a leituras e à observação atenta de tudo que
caia no meu campo de visão.
O que testemunhei foi uma Natureza
violenta e agressiva em toda sua força e pujança. Chuva, muita chuva, muita
água. Sol inclemente, canícula fortíssima quando as carregadas nuvens davam
trégua. As poças d’água secavam rapidamente. Este é o segredo do espetáculo:
água e sol em grande intensidade.
O verde das árvores, das plantas,
da grama, do capim domina a paisagem. Dos animais, os pássaros se destacam em
seus vôos alegres e em bando. Penugens maravilhosas de vistosas cores. Foram
mortas duas cobras (pequenas) das que devem andar pelos matos da redondeza.
Insetos em profusão, incluindo meus inimigos pessoais, os mosquitos.
Principalmente as (sic) carapanãs e os mucuíns. Esses são da família dos ácaros,
pequenos carrapatos, que incrustados na pele ficam a coçar por muito tempo.
Atacam no baixo ventre, nádegas, ilhargas e nas partes púbicas.
Os mosquitos não são vistos, são
sentidos. Não respeitam roupas nem repelentes. O ambiente está impregnado deles.
A partir desta última experiência,
ao ver uma floresta, mesmo em fotos, tenho a sensação de sua umidade, de seu
mormaço e de seus insetos a me rondarem. Quanto aos mosquitos, trata-se de um
assunto extremamente pessoal. Isso não acontece com todas as pessoas, pelo menos
na extensão do que eu sofro. Conversando com uma veterinária gaúcha, branquela
como eu, residente na cidade, disse-me que durante o primeiro mês que se mudou
para lá, suas pernas ficaram inchadas a ponto de não poder caminhar. Logo os
mosquitos se acostumaram com ela. Ou, pelo contrário, seu corpo se acostumou com
os mosquitos. Com certeza criou anticorpos, como o princípio das vacinas ou do
que se diz da homeopatia. Similia similibus curantur.
Pode ser! Mas quando vejo filmes de
índios amazônicos eles estão sempre abanando as mãos ou qualquer objeto para
espantar os indesejáveis pernilongos. O grande perigo é a malária, para a qual
ainda não existe vacina e, atualmente, a possibilidade da dengue, que grassa na
capital acreana.
Enfim, a natureza pulula na região
das florestas. A vida em todas as suas formas é violenta e agressiva. As
experiências da Ford na Amazônia, da construção da ferrovia Madeira-Mamoré e
mais outras, demonstravam isso ao longo da história. Como é resistente, teimoso,
tinhoso, forte o ser humano que desafia tudo e se instala nessas regiões
inóspitas!
Os animais completam o quadro desta
natureza viva. Cachorros, galos cantadores durante toda a noite e madrugada,
aves em geral, pássaros e os bichos em cativeiro que observava quando dava
minhas caminhadas no Parque Chico Mendes. Sentia então a mais próxima
identidade deles para conosco. Excetuando a razão, hoje se comprova que o DNA de
algumas espécies é muito semelhante ao do ser humano. Nos mamíferos, seus órgãos
são praticamente idênticos, a reprodução segue o mesmo processo.
As observações conduzem-nos
facilmente às elucubrações.
O que foi dito até então me remete à teoria da
evolução darwiniana que hoje tem o zoólogo britânico, nascido no Quênia, Richard
Dawkins (que já freqüentou as páginas do JORNALEGO - o de nº 9, de 20.07.2002),
sua maior expressão. Numa entrevista recente à Folha de São Paulo (12.12.2004)
entre outras considerações critica “as pessoas cuja ética é centrada em humanos
e que traçam uma linha clara dividindo os humanos de um lado e todos os animais
de outro.”
A descoberta recente, na Indonésia,
do homo floresiensis, espécie de hominídeo anão que coexistiu com o
homo sapiens, demonstra uma ligação íntima entre os demais animais e o ser
humano.
Pela resenha do seu livro
recém-lançado (The Ancestor’s Tale: A Pilgrimage to the Dawn of Evolution),
sabe-se que Dawkins desenha a ‘árvore da vida’ onde o ramo chamado ‘animais’ é
tão minúsculo que ele precisa indicar como encontrá-lo.
Diante do exposto pode-se concluir
pela insignificância do ser humano no planeta, no contexto vital em que até os
animais são minoria. Os animais irracionais, os vegetais, os seres vivos
microscópicos são a maior expressão da vida, enquanto o homo sapiens
desdenha essas formas, julgando-se a pérola da Terra, haja vista como se porta
no seu meio ambiente.
Extrapolando, presumo que a vida,
no Universo, possa ter sido um acidente terreno. Quem pensa contrariamente – o
que é perfeitamente aceitável – mas usa o argumento de que seríamos pretensiosos
ao pensar que a Terra é o único planeta habitável, tem como premissa a vida como
o valor máximo do Cosmos. Talvez seja uma premissa falsa!
Voltando ao Acre, impressionavam-me, enquanto
lia algo, alguns insetos minúsculos que pousavam nas páginas do livro e aos
quais eu esmagava impiedosamente. Após a sumária execução pensava que, em termos
cósmicos, a vida e a morte deles tinha a mesma importância que a minha, isto é,
nenhuma.
Depois dessas considerações, chego
a intuir que a irracionalidade é a plenitude do mundo animal e a razão sua
imperfeição. Parodiando Tomás de Aquino que dizia: “a razão é a imperfeição da
inteligência e a intuição sua plenitude.”
São excelentes as oportunidades de
observação e de elucubração sobre a natureza, nossa existência, o mundo e o
universo que nos cerca. Enfim, aproveitar a faculdade da razão que a natureza
nos privilegiou para refletir, deixar de inventar besteiras, fantasias e
aprender a viver.