JORNALEGO
ANO III - nº 72, em 30 de
Maio de 2004.
Artigo
O
OUTRO
Descobri uma palavra
recentemente - alteridade - que vem pegando no meu pé, seja pelo
seu significado, novidade ou mesmo sonoridade. Principalmente depois do 11 de
setembro de 2001, quando o século XXI efetivamente começou.
Fui ao
“Aurélio” – tenho um exemplar da primeira edição – e não encontrei o verbete.
Deve ser um modismo retirado da terminologia da filosofia ou da psicologia.
Consultando o “Houaiss”, dicionário mais novo, lá estava a tal da alteridade.
Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto. Em filosofia, continua o
Houaiss, quer dizer situação, estado, ou qualidade que se constitui através de
relações de contraste, distinção, diferença. Nas minhas palavras, correndo,
portanto, o risco de errar, alteridade seria o reconhecimento, a compreensão, a
admissão do “outro”, o que nos levaria a uma melhor convivência com “ele” ou
“ela”.
Fascinado pelo tema, li há
pouco tempo um livro de José de Souza Martins, intitulado “Fronteira”, com o
subtítulo “A degradação do Outro nos confins do humano”. Mostra como a
alteridade é desprezada no desbravar de novas fronteiras, na conquista de
territórios, aumento de propriedade, abrangência de poder etc. Pelo mesmo motivo
fui levado a uma nova leitura, ainda inconclusa. Agora, por causa do atentado às
Torres Gêmeas em Nova York, o revide com a invasão do Afeganistão, o acirramento
da crise no Oriente Médio (judeus versus palestinos), a caça às bruxas
terroristas, a invasão do Iraque, enfim, à ganância pelo controle do petróleo
que envolve o conflito das visões orientais e ocidentais.
Trata-se de um livro, que
dormitava em minhas estantes, só folheado para ver as fotos, porque meu
interesse ao adquiri-lo era o “petróleo”. Como o autor tinha uma ótica muito
americanista e primeiro-mundista do assunto, sem considerar as visões e direções
alternativas e nacionalistas de países como o Brasil e a Argentina,
desinteressei-me temporariamente pelo livro. Agora o objeto de minha preocupação
é o “outro”. Nesta leitura, o petróleo passou a ser o meio para se entender a
problemática do “outro”, naquela região conturbada, o Oriente Médio, onde estive
em 1972 (Bagdá e Beirute) na minha primeira ida ao exterior.
O título do livro é “The
Prize, the epic quest for oil, money & power”, de Daniel Yergin. Leio-o em
inglês, tendo ao lado sua tradução “O Petróleo, Uma história de ganância,
dinheiro e poder”, à qual recorro para melhor entendimento. Com isso tenho mais
dois ganhos subsidiários, primeiramente treino o meu inglês, em segundo lugar,
ao lidar com os dois grandes volumes e ainda apelando de vez em quando para o
dicionário – outro calhamaço – também exercito os velhos e cansados bíceps dos
antebraços.
Naquela viagem a Bagdá, a
primeira cidade estrangeira que conheci, tive o choque abrupto do “outro”.
Conversando com os iraquianos, principalmente com mais vagar com um advogado que
nos serviu de cicerone à Babilônia, comecei a perceber quão diferente é a
maneira de pensar deles em relação à lógica racionalidade ocidental. Nós
pretendemos ter explicações para tudo. Eles, não necessariamente. As coisas são
assim porque são, porque sempre foram.
A leitura de um pequeno livro
de bolso sobre o árabe, sua história, sua religião, a maneira de viver, de
pensar, a convivência, a questão de gênero (homem x mulher), recomendado por um
colega, descendente de árabes, fez-me entender mais as grandes diferenças entre
as nossas culturas. Não adianta maiores explicações neste artigo. Alguns
costumes deles são conhecidos por nós. O que nos escapa é uma melhor compreensão
para propiciar uma melhor convivência. De parte a parte, logicamente. Deles para
conosco também.
A atual arrogância ocidental
leva o governo americano a querer subjugar aqueles povos e fazê-los rezar na sua
cartilha, pensando que a melhor maneira de viver é o “american way of live”.
Resgatou-se, para justificar a agressão, o conceito do bem contra o mal. “A luta
entre o bem e o mal se transforma assim num jogo radical de aniquilamento do
outro” (1). Da mesma forma se deu com os Romanos, com as Cruzadas, com os
Ingleses e todos povos colonizadores e imperialistas que temos notícias. Impor
valores e culturas e explorar riquezas, principalmente.
O reverso da medalha também é
mostrado seja na atualidade ou na história da dita civilização. No presente com
o atentado terrorista de Nova York, explicável mas não justificável. No passado,
são exemplos as hostes bárbaras que invadiram o ocidente. Os mouros que
subjugaram e dominaram durante séculos o oeste europeu.
O outro sexo, o
homossexualismo, o indivíduo de outra cor, de outro credo, de outra região, de
outra facção política, têm que ser respeitados em suas singularidades. Não o
fazer é aceitar um preconceito o mais ignóbil da raça humana. E por falar em
raça humana, chego a pensar na expansão do conceito de alteridade para outras
raças, a dos animais. Somos habitantes deste planeta conjuntamente com todos os
animais e seres vivos, incluindo os vegetais.
O planeta não
é habitat exclusivo do ser humano. Esses pensamentos remetem-nos imediatamente a
considerações ambientalistas e à necessidade da conservação e da convivência
entre todas as espécies.
A postura correta a ser
seguida é a empatia com o outro. Vê-lo como vemos a nós. A falta de
sensibilidade a esse princípio faz-me lembrar de uma deliciosa anedota, que
retrata o envolvimento amoroso entre dois lídimos exemplares da nobreza inglesa.
Milady lânguida, após um bem-sucedido
intercurso sexual com o Milorde, pergunta:
– My dear, será que o povão sente as
mesmas sensações que acabamos de sentir?
Milorde, senhorial, responde:
– Yes, certainly
milady.
Milady conclui:
– Isso é muito bom para eles, isn’t it?
O 11 de setembro foi uma lamentável reação ao
estado de coisas reinante, que ao invés de gerar reflexão provocou mais
violência, e ainda não se sabe aonde isso vai parar.
A tentativa
de dominar o terrorismo exclusivamente com manu militari tem gerado mais
terrorismo. Por mais que as forças militares israelenses destrocem as cidades
palestinas e matem seus líderes, maior é a incitação à retaliação. “O único modo
de resolver um conflito é imaginar o outro, se colocar no lugar de outra pessoa
ou de outro povo” (2).
Um belo
exemplo de respeito pelo outro, portanto, de compreensão do que seja alteridade,
testemunhei numa entrevista com uma artista plástica que visitou e pintou a vida
de populações isoladas na Amazônia brasileira. Dizia ela que via nos índios, nos
garimpeiros, nos seringueiros, a ela própria. Por uma série de contingências ela
estava do outro lado das telas reproduzindo nelas essas pessoas. Ocorreu-lhe a
possibilidade de ser ela a retratada, o que deu um tom muito mais bonito e
humano, embora pungente, ao seu trabalho.
O grito e a
alegria do gol de um time é a contrapartida do lamento e da tristeza do time
adversário. O importante é compreender que podemos estar nas duas situações. O
futebol pode nos ensinar isso durante um campeonato e mesmo no transcurso de uma
única partida.
O outro
é nossa imagem. O respeito pela alteridade é uma prova de altruísmo. Ambos os
prefixos dessas palavras devem ter a mesma origem, por suposto.
Dito isso, só
falta agora convencer a humanidade. A começar pelos atuais donos do poder
imperial. Elementar, meu caro leitor!
Ao terminar
este artigo de maneira um tanto jocosa, mostrando como é difícil reconhecer o
outro, lembrei-me de uma mensagem fraterna com mais de dois mil anos que diz
assim: “Amai o próximo como a ti mesmo”. Pois bem, o século XX testemunhou dois
grandes conflitos, massacres e genocídio, cenas dantescas, num continente
eminentemente cristão, envolvendo países de maioria cristã. Refiro-me às duas
grandes guerras mundiais.
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(1) José Arthur
Giannotti.
(2) Amós Oz
Sugestão de releitura: “Bagdá”.
http://www.ecen.com/jornalego/no_30_bagda.htm
Neste texto eu não previ a valorosa reação dos
iraquianos aos invasores.