JORNALEGO
ANO II - Nº 68, em 20 de Abril de 2004.
Conto
O
ENXOVAL
– Minha filha!
Veja como são lindas
estas toalhas! Como são delicadas! Todas bordadas à mão. Esta vem da Ilha da Madeira. Repare a
profusão de cores nas flores, a composição com os caseados e os vários tipos de crivos! Esta outra é
toda em pontos-de-cruz com bainhas em crochê. Foi feita pelas órfãs do colégio das freiras. Olha
esta aqui! Tão bonita ou mais que as anteriores. Observe! Uma toalha chinesa. Não tem o colorido
português daquela, mas atente para a sobriedade dos pontos-cheios em bege e que fino acabamento!
Com esta sua visita,
me deu vontade de rever as últimas peças do meu enxoval de casamento no velho baú de sua avó. Estas
toalhas estão aí guardadas há mais de quarenta anos, quando me casei. De vez em quando eu as
desdobro, deixo-as arejar, fico a admirá-las, tiro as marcas que o tempo vai bordando. Só me restam
agora estas toalhas de mesa. Como nunca foram usadas ficam para sempre guardadas. Atente para os
guardanapos igualmente trabalhados com os mesmos padrões das toalhas. Não se usam mais essas peças.
Os similares de papel, alguns até muito elegantes, são bem mais práticos, descartáveis.
Tudo o mais do meu
enxoval foi sendo consumido ao longo desse tempo. As toalhas de banho e de rosto com monogramas,
igualmente bordadas. As colchas, as fronhas e os lençóis. Ah! Os lençóis! Foram os primeiros a ficar
imprestáveis. Seu pai suava muito nos verões de nossa cidade, manchando-os. Seu suor chegava ao
colchão. Seu xixi – o seu, não o dele – invariavelmente vazava daquelas fraldas de pano que se
usava, quando você vinha terminar o sono em nossa cama ou mesmo, no meio da noite, quando se
aninhava entre nós refugiando-se de algum pesadelo. Sem contar – agora você entende as canções do
Chico – “das marcas de amor em nossos lençóis”. Tudo foi sendo consumido aos pouquinhos. Só ficaram
essas toalhas de mesa jamais utilizadas.
No princípio de
nosso casamento vivíamos numa quitinete e fazíamos nossas refeições na pequena mesa da cozinha. Não
tínhamos copa, nem mesa na sala. Ah! Que sala! Era um misto de sala e quarto. As toalhas eram
grandes e muito sofisticadas para aquela situação. Depois de cinco anos, só depois de uma gravidez
interrompida e outra igualmente frustrada você vingou. Falo assim porque não sei o plural de
gravidez. Foi quando saímos para o apartamento da periferia, com dois quartos e sala. Mas na sala, a
mesa redonda e mínima que dobrada virava console, não comportava ainda essas imensas toalhas. Meus
projetos não se adequaram à realidade.
Não foi fácil
comprá-las. Empregava quase todo o meu ordenado de funcionária pública na sua aquisição. Um vendedor
ambulante que aparecia lá na repartição me fez ficar com elas, pouco a pouco. Fiquei maravilhada.
Paguei em várias prestações mensais. Morava na casa dos meus pais e não tinha outras despesas. Todo
o meu dinheiro ia para construir meus castelos de moça casadoira nessas peças. Comprei toalhas de
mesa, de banho, de rosto, lençóis, colchas, fronhas. Casei-me com tudo completinho.
Quando você nasceu,
que alegria! Você sempre foi muito bonita, a cara do pai, as mesmas feições pelas quais me
apaixonei, meu primeiro namorado. Você foi um lindo bebê, uma linda criança e ainda hoje é uma linda
mulher. Foram as duas paixões de minha vida. Você e seu pai.
Meu casamento durou
duas geladeiras. É assim que o hilário do seu tio conta o tempo dos casamentos. Bastante
espirituoso! Cada geladeira dura aproximadamente dez anos. Já foi o tempo que elas duravam mais. Os
casamentos também. Quando tudo acabou senti muito.
Sentia muitas
saudades de seu pai. Isso me maltratou muito. Sentia falta do seu corpo, de seu rosto bonito, de
seus olhos claros, de sua alegria que foi se acabando aos poucos, não sei porquê. Sentia falta de
sua barba, seu cheiro, seus braços fortes e daquelas mãos! Nos nossos jogos de amor eu dizia em
falsete, coquete e provocante, imitando Chapeuzinho Vermelho: – Pra
que essas mãos enormes? Ele me respondia, engrossando a voz,
fazendo-se de Lobo Mau: – É pra te pegar!
Ele me abraçava, me beijava, me mordia, me pegava. Agora que ele deixou também a vida, essa saudade
vem se aplacando aos poucos e eu estou ficando mais serena, mais conformada. Sempre o amei.
Que Deus o tenha!
Foram muito bons os primeiros anos de casamento, contornar as dificuldades inevitáveis. As
preocupações com você que, por sinal, não foram tantas. Você sempre foi uma menina obediente,
saudável, estudiosa. Depois que ele se foi da minha vida a situação piorou. Faz vinte anos que ele
me trocou por outra. Ficamos com aquela pensãozinha de desquitada. Ainda tive de comprar a terceira
geladeira. Agora recebo pensão de viúva a que ainda tenho direito. Se não fosse você, com sua ajuda
que nunca me faltou, estaria muito mal. Graças a Deus também tenho uma saúde de ferro e vou me
agüentando, embora com muitas saudades suas.
Não continuei os
estudos, larguei o trabalho para me casar e cuidar da casa. Naquele tempo era assim. Não foi por
machismo do seu pai. Era a cultura da época. Foi bom vê-la crescer. Acompanhar seu sucesso nos
estudos e no trabalho. Sua ida para o exterior. Viver tão longe! Num país tão frio. Ainda bem que
você vem me ver todos os anos por esta época.
Como são belas estas
toalhas! Nunca tive oportunidade de usá-las. Meu sonho era expor essas preciosidades em cada
comemoração de nossa família; aniversários natalícios, de casamento, convidar os poucos parentes
daqui e oferecer uma bela refeição, servida por sobre estas obras-primas. Nelas materializava parte
das minhas ilusões de felicidade conjugal!
Não há como usá-las
mais. Tomei uma decisão. Presenteá-las! Quem sabe você não terá as oportunidades que eu não tive
para usá-las.
– Minha mãe!
São realmente
magníficas suas tolhas. Mas não posso aceitá-las. Muito agradeço, de coração. Vivo sozinha num
apart-hotel e meus dias são de trabalho e pouca diversão. Eu também não tenho uma mesa digna de tão
ricas toalhas. Lá onde eu moro é tudo tão prático. Mesmo quando convido uns amigos para uma
refeição, os pratos são encomendados e eu só faço abrir as embalagens e os vinhos, isso se não
houver algum homem por perto. Afinal, é para isso que eles servem, especialmente para abrir vidros
de conservas. Não é mesmo?
Já perdi as
esperanças de me casar, mesmo de morar com um namorado. Talvez eu seja muito exigente. Não sei o que
se passa comigo. Os homens são sempre cordiais, mas não se interessam por um relacionamento mais
profundo. Talvez porque eu tenha estudado demais. Talvez porque trabalhe demais. Uma executiva, uma
mulher de expedientes, de decisões, de opiniões, talvez os amedronte. Quem sabe, o porte da empresa
na qual trabalho? O meu cargo de gerente, comandando centenas de subordinados?
Não dá para aceitar
este lindo presente! Agradeço a intenção de me doar estas toalhas, mas acho que você ainda vai
mantê-las por um longo tempo nesse baú, que um dia conteve suas esperanças, agora guarda suas
saudades.
A vida é assim! Nada
a lamentar!
Alguém está batendo
à porta.
!?
Genserico Encarnação Júnior
Itapoã, Vila Velha (ES)
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