JORNALEGO
ANO II - Nº 36, em 30 de Abril de 2003.
Conto “noir”
A VIGÍLIA E O SONO
“Não mais o sonho, mas o sono limpo
de todo o excremento romântico”.
Carlos Drummond de Andrade
Há pouco tempo, ainda impregnado de idealismo -
no bom sentido da palavra - modifiquei o verso do poeta. “Sonhar o sonho limpo
de todo o excremento romântico”. Foi aí que me perdi.
Se existe um bom
sentido, o que seria o mau sentido do idealismo? É o pensamento impregnado
daquele malfadado excremento. Uma praga que assola a humanidade! Idealizam-se
mundos e fundos alheios à realidade, antropomorficamente, como se o ser humano
fosse o centro gravitacional e a obra mais maravilhosa do universo e tudo
existisse segundo seu entendimento, para sua glória e desfrute. A partir dai são
gerados sonhos grandiosos, cheios de fé e esperança, que são as condições
básicas para a prática do engodo e da demagogia.
Foi nesta encruzilhada
que me ferrei; na tentativa de me limpar do excremento romântico me vi nas
malhas do excremento ultra-realista.
Atualmente, preciso, no
mínimo, de dezesseis horas de vigília para me recuperar das oito horas de sono
diário. Não é bem o sono que me fatiga, são os sonhos. A minha atividade onírica
tem sido por demais intensa.
Paradoxalmente, é
exatamente durante esse “período de recuperação” que capto informações que me
levam a enfrentar o suplício da cama. Agora que parei de trabalhar, depois de
longos anos de dura faina, tenho mais tempo para olhar, observar, analisar,
contando com maior experiência de vida e a perspectiva mais próxima do seu fim.
Os sentidos estão mais aguçados, atentos e alertas.
Já quis voltar a ter
uma atividade profissional para não me envolver tanto com as coisas que
acontecem à minha volta, mas não adianta, na minha idade ninguém me quer mais.
Uma terapia ocupacional qualquer que me distraia não faz o meu gênero.
Estou vivendo um período de
ociosidade ativa. As leituras, a observação atenta, a análise crítica dos
acontecimentos ocupam as dezesseis horas de vigília. Sem vínculos familiares,
afetivos ou profissionais, vivo solitariamente das poucas rendas oriundas de um
pequeno patrimônio que pude construir durante a minha fase ativa.
Aí reside a causa dos
meus sonhos. Tempo ocioso, durante o qual observo atentamente os acontecimentos,
expurgados do ranço romântico das coisas e com visão lúcida. Esta última
colocação requer uma explicação para evitar qualquer suspeita de cabotinismo de
minha parte. Lucidez é aqui empregada não no sentido de ter opiniões acertadas,
mas simplesmente admitir que minhas faculdades mentais funcionam bem, apesar da
idade avançada. A memória é que me falha de vez em quando.
Meus sonhos nada têm de
freudianos. Logicamente, têm como base a minha estrutura psíquica. São produtos
do inconsciente e da minha vida reclusa, solitária, sedentária e de interação
social e afetiva nula, mas refletem a preocupação com a evolução da assim
chamada humanidade navegando à deriva por mares procelosos. Sem falar nas minhas
inquietações existenciais!
Vejam só o meu
calvário. Por exemplo, sonhei que superaria os cem anos de idade. Viver mais
quarenta e poucos anos! Chegar à metade deste século! Que suplício! Como? A
medicina e a farmacologia estariam na base dessa longevidade. O diabetes, o
câncer, os males de Parkinson e Alzheimer, os problemas da próstata e hormonais,
a osteoporose, a perda de memória, tudo devidamente contornado. A engenharia
genética, as drogas medicinais, as próteses, as plásticas, as cirurgias em geral
permitindo esse milagre. Aos poucos eu ia me transformando num Frankenstein a me
estranhar ao espelho e apavorar criancinhas. Como não tenho vocação para suicida
restaria a mim este suplício.
Por outro lado, neste
maravilhoso mundo novo, o martírio é ter que testemunhar uma crescente apartação
econômica e social entre as pessoas e os povos. A dificuldade sempre crescente
de atender as demandas sociais das grandes populações periféricas. Dos países e
nos países. Os problemas de emprego, habitação, saúde, educação e principalmente
sanitários desse contingente está na causa do aparecimento de novas epidemias
globalizadas, com as quais sonho periodicamente.
A proliferação dos
vírus, mais fortes que o ser humano, e sua disseminação através dos modernos
meios de transportes globalizando o ataque viral em tempo quase real. A aids
ainda grassando, sem solução para estancar a devastação que provoca nos países
subdesenvolvidos. A propagação de epidemias como esta pneumonia asiática. Sonho
que os mais abastados viveriam em bolhas imunizadas a usar trajes espaciais com
aqueles enormes capacetes envolvendo toda a cabeça. As máscaras cirúrgicas, hoje
comuns no Oriente, seriam as precursoras desses novos itens da indumentária
humana no futuro.
Além dos vírus, em meus
sonhos não estão ausentes as pragas que assolam o campo, a lavoura e a pecuária.
São exemplos a doença da vaca louca, a febre aftosa e os efeitos ainda
desconhecidos do consumo dos alimentos transgênicos sobre a saúde humana.
A indústria e a energia
que a move e aos transportes, a poluir o ambiente. Vejo nos meus delírios as
megalópoles, os grandes conglomerados urbanos em constante crescimento, a
proliferação dos guetos miseráveis como se fossem placas de corais a se
estenderem indefinidamente por todos os espaços disponíveis. Não há retorno. Não
há solução. A despeito dos avanços tecnológicos, o que me passa dos meus
devaneios é que, definitivamente, vivemos num período de regressão do processo
civilizador.
A atual esperança
nacional a ser solapada pela força hegemônica imperial mundial, cujo programa
básico consiste na ampliação de seus poderes, dilapidando o concerto
multinacional, com a introdução da democracia na porrada, segundo seus próprios
valores.
Vou parar por aqui, não
pretendo repassar neste relato as minhas angústias noturnas. Escrevo para dar
vazão ao que se passa no mais íntimo de meu ser. O romantismo e o “pensar
positivo” são perigosos porque não levam às pessoas a se precaverem. “Pensar
negativo” e realisticamente são atitudes necessárias para se antecipar e se
contrapor, contornando ou evitando os fracassos e desastres.
Porém, isso nos meus
sonhos é impossível. Com o aumento da população no globo ainda estaria para
vingar o sistema político que permita uma diminuição das disparidades entre as
pessoas. Não há aparente solução para o terrorismo e o banditismo.
Às vezes os sonhos me
levam à vida eterna. Depois da morte, “viver” em espírito para toda a
eternidade. Causa-me calafrios, seja na glória de um paraíso ou nos quintos dos
infernos. Pior é a reencarnação! Voltar a esse vale de lágrimas! A
impossibilidade de um fim é-me angustiante. Na ânsia de continuar a viver não
admitir o fim total é um auto-engano. Surpreendem-me as pessoas não se afligirem
com isso e aceitarem passivamente, por vezes até alegremente, tão sinistras
hipóteses. A verdade, contudo, é que se isso existe, não é nossa aflição,
opinião e argumentação racionais que o evitaria. Quem “viver” verá! Ou não.
Que alívio quando
acordo! O sonho me cansa, a vigília me recompõe. Mas a roda viva não pára. É
acordado que alimento os sonhos, recolho o material que será processado pelo
inconsciente, através da leitura e da observação atenta sobre as coisas que
estão a acontecer. Basta abrir os olhos, ler jornais, ver televisão, andar pelas
ruas, sentir o ar. É um círculo vicioso a gerar sonhos cada vez mais
apocalípticos.
Concluo que não se pode
viver assim, como vive o mundo e como vivo eu. Chego a admitir a necessidade do
romantismo, do auto-engano, da fantasia do amor, da necessidade da crença em
algo sobrenatural, do calor do afeto para sobreviver a esta triste condição
humana, uma armadilha, um beco sem saída. Esta alternativa, no entanto, tem
seus perigos se o desvirtuamento em relação à realidade for grande: a
frustração, a esquizofrenia, a loucura.
Caminhamos sobre o fio de uma
navalha!
Gostaria muito de
permanecer em vigília. Tenho medo de dormir. Como gostaria de permanecer no
presente, evitando o futuro. Temo o depois. Um temor um tanto altruísta, é
verdade. Afinal, a despeito dos meus sonhos atuais de longevidade, não escaparei
de dormir o sono sem sonhos. Muito melhor do que o desejado pelo verso
epigrafado. O sono limpo de tudo.
Num dos últimos sonhos
eu discutia veementemente com uma pessoa com visões diametralmente opostas às
minhas. Era um otimista convicto rebatendo todas as minhas previsões. Cansado de
esgrimir argumentos contrários à sua posição, acordei. Somente aí atinei que o
meu interlocutor - fenômeno somente permitido no mundo dos sonhos ou no da arte
- era eu próprio.
Genserico Encarnação Júnior
Itapoã, Vila Velha - ES
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