ANO X - N°
287, em 30 de novembro de 2011.
Conto
O MISTÉRIO DA RUA PERA
Foi numa rua chamada
Pera, em certo Jardim Tropical, na mais ocidental província da
Amazônia brasileira que se deu o epicentro dos estremecimentos deste
conto. As poucas placas sinalizadoras que existem ao longo da
pequena extensão desse logradouro ainda grafam pêra, com
acento circunflexo, assim como se escrevia antes da recente mudança
da ortografia oficial da língua portuguesa, a prevalecer no Brasil,
Portugal e Algarves; queria dizer: algures.
A ladainha
acontecia relogiosamente entre as quatro e seis horas das
tardes de domingo. Discussões, gritos histéricos femininos, altos
palavrões de baixo calão, agressões físicas e verbais, xingamentos e
muito choro, enfim, um dramalhão, aparentemente uma tragédia
familiar. As expressões, cheias de som e fúria, vinham,
perfeitamente nítidas, da casa da Rua Pera, do vizinho dos fundos,
cujos muros altos não permitiam acesso visual aos moradores da rua
de trás.
As casas geminadas dessa
rua paralela eram de duas amigas, bem-casadas, mães de família e
donas de casa, convivendo bem com seus respectivos maridos. Eram,
de fato, muito amigas, embora com pontos de vistas filosóficos e
políticos não tão coincidentes. Marialva era a mais politizada,
porque ex-universitária, embora sem exercer nenhuma atividade no
campo da sua formação acadêmica: ciências sociais. Creusa sempre foi
do lar, muito religiosa e um tanto conservadora nos seus
pensamentos, opiniões e atitudes. No entanto, as amigas se de davam
muito bem no ti-ti-ti diário e na crônica cri-cri (crianças e
criadas), tão comum entre esposas domésticas.
Quem primeiro se ligou
para o que estava acontecendo além-muro foi Creusa, que se
escandalizou principalmente com os sonoros palavrões. Deve ser coisa
de marido embriagado que caiu na farra com os amigos e agora
desconta na pobre da mulher. E quedou-se na escuta. Havia outra voz
feminina no pedaço que, possivelmente, tinha sido a causa da
discussão. Deve ser algo relacionado com traição, infidelidade
conjugal. Alguém, talvez, da própria casa ou que a frequente e que
transou com o marido: a empregada, uma parenta próxima, quem sabe? A
pobre da esposa descobriu e agora está soltando sua raiva contra o
marido e sua concorrente. Apurou os ouvidos e assim tirou as suas
conclusões. Mais tarde, com a volta do silêncio e a chegada da
noite, foi à casa da Marialva.
– Eu também escutei o
vozerio, uns gritos, mas não dei muita importância ao que por lá se
passava. Logo depois do início da discussão saí com o Geraldo e as
crianças e fomos lanchar na casa da mamãe.
– Que coisa minha filha!
Que escândalo! Que cena pavorosa! Que inferno deve estar vivendo
aquela mulher com aquele marido. E mais: tem outra mulher por lá que
azucrina a vida dela. Deus queira que os ânimos tenham se
arrefecido, se isso continuar assim vai acabar em tragédia.
Passada uma semana, à
mesma hora de domingo, o pau voltou a quebrar. Creusa ligou para
Marialva para que ela viesse correndo à sua casa e testemunhasse
auditivamente o que estava ocorrendo.
– A coisa é grave, disse
Marialva. Que baixaria! Esse homem vai matar a mulher e
possivelmente com a colaboração da outra que sempre participa das
discussões. Das duas uma: vamos depois procurar essa mulher ou ligar
agora para o 180 ou o 190 denunciando a agressão do marido e a
situação que me parece insustentável.
– Nem pensar, retrucou
Creusa. Em briga de marido e mulher não se mete a colher.
– Nã, nã, ni, nã, não!
Nada disso. Esse é um clichê odioso e anacrônico. Não podemos nos
acomodar e ficar aqui assistindo passivamente essa triste cena.
Temos que denunciar. Caso contrário, estaremos compactuando com a
agressão machista que está acontecendo por lá. Nosso papel de
mulheres politicamente corretas e de cidadãs lúcidas e politizadas
não permite esse tipo de comportamento passivo.
Duas cenas sonoras
aguçaram ainda mais a responsabilidade das amigas. Uma foi a
sucessão de gritos e sussurros durante uma inconfundível sessão de
sexo, que misturava violência com gemidos de gozo. Outra aconteceu
alguns minutos depois, com uma das vozes femininas chamando o homem
de assassino repetidas vezes, praguejando em altos brados.
Telefonaram
imediatamente para o 190 delatando à Polícia o que estava
acontecendo na Rua Pera. Ligaram depois para a Delegacia da Mulher.
Esses agentes do poder público, considerando a grande excitação das
mulheres ao comunicar o que se passava, combinaram o assalto
conjunto ao local, marcando, precisamente, para dentro de quinze
minutos o cerco à casa e, se necessário fosse, a invasão.
– Venham depressa, pelo
amor de Deus, implorava Creusa quase chorando e Marialva explicou
rapidamente a localização da rua e da casa.
Pontualmente, como
acertado entre eles, três carros da Polícia Civil cercaram a rua, um
entrando por um lado e os outros dois por outro. Imediatamente após
a chegada dos policiais, chegou também a titular da Delegacia da
Mulher acompanhada de duas policiais. Os carros da polícia que
vinham a toda velocidade com suas sirenes abertas, pedindo passagem
nas ruas de acesso, desligaram seus sons estridentes ao entrarem no
palco dos acontecimentos e chegaram de mansinho à casa fatídica.
Era uma casa grande, de
dois pavimentos, tendo ao lado um extenso quintal com muitas árvores
frutíferas. Na parte frontal deste quintal se alinhavam sete altos
jambeiros que interrompiam a visão do resto do terreno, mesmo se
tentada por sobre o alto muro que o separava da rua.
Ainda chegaram a ouvir o
vozerio e alguns impropérios. Prontamente acionaram a campainha, os
cachorros correram para o portão latindo com estardalhaço. Com os
incessantes toques da campainha e a barulheira dos latidos, logo
cessaram os gritos e, a seguir, a cara simpática e assustada do dono
da casa, um jovem senhor de meia idade, saindo pelo portão que dava
acesso ao quintal foi atendê-los na grade principal da casa.
À vista das armas
apontadas, o coitado do homem, tomado de pânico, quase não conseguiu
se explicar e abaixar os braços que foram instintivamente suspensos
sobre a cabeça, gaguejando, tremendo, o que o impedia de abrir o
cadeado. Conseguiu passar, ainda trêmulo, as chaves para um dos
policiais que abriu o portão, mas que não ousou entrar com medo dos
cães que continuavam ladrando. Com o afastamento dos animais, o dono
da casa perguntou do que se tratava e, percebendo o que se passava,
disse rapidamente e em voz nervosa: é teatro, estamos fazendo
teatro. É tudo representação, encenação. Vamos com calma minha
gente. Venham ver.
E assim foram serenados
os ânimos, com o aparecimento progressivo da trupe de atores que
saía aos poucos, assustados, olhos esbugalhados, da arena no quintal
onde rolava a peça-ensaio.
Desvendado o mistério, a
titular da Delegacia da Mulher batizou e arquivou o processo a que
chamou de o “caso da Serpente”, o mesmo nome ofídico da peça teatral
do renomado dramaturgo nacional Nelson Rodrigues que estava sendo
ensaiada por um grupo amador de atores, composto por alunos do curso
de Artes Cênicas da
Universidade local, sob a orientação do diretor e professor de nome
um tanto estranho: Thespis.
Os vizinhos da frente e
dos lados da Rua Pera foram antecipadamente avisados por Thespis
que, no entanto, se esqueceu de fazê-lo aos vizinhos de trás.
Depois do aparatoso
espetáculo policial, foi marcada uma apresentação para o domingo
seguinte, um ensaio aberto (ainda sem iluminação, cenários e
figurinos) para toda a vizinhança, na mesma arena octogonal do
quintal da casa do professor, um chapéu de palha (sem palha)
amplo, que se prestava muito bem a laboratório teatral. Os delegados
e policiais também foram convidados e compareceram. Não foi
permitida a entrada de menores de idade.
Desta feita, o
espetáculo terminou com uma estrondosa salva de palmas da audiência,
a despeito do triste final, com a morte trágica de uma das
personagens, provocada por seu esposo ao empurrá-la do alto do
edifício onde moravam. Estava certa a Creusa, aquelas discussões
tinham que terminar em tragédia.
Assim é o conto. Assim é
a vida. Simplesmente, “a vida como ela é”.
Elementar, meu caro leitor!
FIM
Roleta literária:
Passe o visor de cima para baixo e de baixo para cima na lista da
esquerda, sem atentar para os títulos. Clique sobre um deles
aleatoriamente. Boa sorte. Boa leitura ou releitura.