JORNALEGO
Nº 27,
em 20 de Janeiro de 2003.
Conto
O CONTO DO VIGÁRIO
Como aprendiz de escritor, adquiri
um péssimo hábito, quase um vício, do qual tento me livrar há alguns contos.
Trata-se de começar um texto com o nome do principal personagem. “Tipo assim”:
Lotário, a despeito do nome, não é um pobre de espírito. Ou: Mário Eugênio era
engenheiro de uma empresa estatal... Graças a esta autocrítica introdutória,
consegui afinal, como viram, superar esse cacoete. Vamos, portanto, sem maiores
delongas, à história que ora proponho contar.
Jorge, desde quando saiu das
fraldas, começou a ser influenciado pelo avô a seguir a carreira eclesiástica.
Morava com ele e os pais atrás da Igreja de Santo Eustáquio, que sediava a
Arquiconfraria de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, da qual o dito avô era
presidente de honra há anos. Ali também se prestava culto a Nossa Senhora da
Cabeça, Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, Nossa Senhora do Líbano, Nossa
Senhora da Penha, Nossa Senhora Aparecida e mais recentemente Nossa Senhora
Desatadora de Nós, todas instaladas em seus nichos, pequenos altares laterais, a
flanquear a nave e o altar-mor dedicado ao santo padroeiro da igreja
quatrocentona.
Jorginho sempre fora educado em
colégio de padres. Daí para o Seminário a estrada estava pavimentada, driblando
com facilidade a prestação de serviço às forças armadas brasileiras, obrigação
de todo o jovem macho ao atingir a maioridade.
Depois de ordenado ganhou uma
paróquia na sede do município de Marechal Floriano, na serra capixaba. Dali
atendia a uma comunidade que se espraiava por todo a região, incluindo partes de
Alfredo Chaves e Domingos Martins. A matriz se localizava, como de costume, numa
elevação que lhe dava o devido destaque sobre as outras construções, ao lado do
indefectível cruzeiro que se iluminava nas proximidades do Natal.
Fiel às novas orientações episcopais, a igreja
não tinha aquela variedade de imagens a que se acostumara na sua infância. Só
uma imagem de Nossa Senhora da Conceição ficava ao lado, num pedestal. Por cima
do altar pairava uma grande cruz escura, de madeira, que se projetava no espaço,
com iluminação indireta, por detrás, realçando seus contornos e dando a ilusão
do signo estar flutuando sem apoiar-se nas paredes do fundo. Na quaresma, as
luzes ficavam apagadas e um manto branco, pendia de seus braços, formando um M
maiúsculo que acredito representasse o santo sudário.
Padre Jorjão, como era chamado,
por força de sua altura, estatura e postura, nesta época que aqui se narra, já
entrara na casa dos quarenta anos, mas com aparência de trinta e poucos. Vida
mansa essa de padre de aldeia a se dedicar a missas, casamentos e batizados,
eventualmente uns servicinhos póstumos ou pré-póstumos – diz-se “eventualmente”
por força da saúde da população local - e muita leitura, sacra e principalmente
profana. Profana, bem entendido, colocada aí em contraposição à sacra, nada a
revelar uma tendência mais liberal, libertina ou libidinosa do padre. Alto,
louro, rosto sanguíneo, olhos azuis de descendência européia, uma bela figura de
homem. Sempre bem penteado, bem barbeado, bem vestido, mas muito recatado.
Evitava intimidades com as moçoilas do lugar.
Morava sozinho, com o amparo
profissional de uma velha senhora que cozinhava e fazia os serviços domésticos
da casa paroquial muito a contento até que, como toda velhota, veio a falecer.
Foi então que surgiu na nova casa paroquial a jovem Terezinha e seu filhinho de
oito anos, Nenéu, apelido de Manoel. Vinham de São João Pequeno, vilarejo da
área rural do próprio município de Marechal Floriano, coberto pelas atividades
espirituais do nosso personagem desde quando para ali fora designado.
Terezinha era muito jeitosa de
corpo e alma. Gostosinha e pacata. Altura mediana, rosto largo, bonitas feições
e muito simpática. Morava num grotão, praticamente sozinha, acompanhada só do
menino, depois da morte dos pais. De pouco falar e muita competência nos
serviços domésticos. Mas quem roubou logo a cena foi Nenéu. Lourinho, olhos
azuis, temperamento vivíssimo, freqüentava a escola pública local, ainda no
período de alfabetização. Estava um pouco atrasado em relação à idade que
geralmente se aprende a ler e escrever.
Era visto constantemente apegado
ao padre, que lhe ministrava as lições, logo após a missa, e, invariavelmente o
levava e trazia da escola, na parte da tarde, embora ela fosse muito perto da
igreja e da casa paroquial, ao seu lado. A mãe vivia atarefada com os serviços
da casa – limpeza, almoço, janta, lavar e passar – incluindo todas as compras
necessárias.
Nenéu, quando não estava na escola, brincava
pela vizinhança com algumas crianças ou estava ao lado do padre Jorjão a fazer
os deveres de casa, as refeições, assistir TV e outras coisas mais. Até o banho
diário era dado pelo padre, cujas atividades lhe permitiam uma vida bem mais
folgada do que a da mãe.
O chamego do padre pelo menino
começou a ouriçar mentes mais ariscas, principalmente as mais bem informadas
pelos noticiários de televisão sobre alguns desvios de conduta de padres
católicos, notadamente nos Estados Unidos.
O ti-ti-ti começou como sempre com
as comadres do lugar e foi tomando corpo junto às autoridades municipais, o
prefeito, o juiz e o chefe de polícia.
Nada chegara ainda aos ouvidos do
padre Jorjão. Sua vida era totalmente devotada aos serviços religiosos e aos
cuidados extremosos com o Nenéu.
- Essa mãe é cega, parece que não percebe nada
do que pode estar acontecendo no recesso daquela casa! Coitada, é ignorante,
inculta! Devia dar graças a Deus, pois, em boa hora, foi resgatada pelo padre
daquela roça ingrata e da solidão que se encontrava perdida nas profundezas dos
vales da serra capixaba. Agora se sabe mais do porquê da generosidade do
vigário.
Terezinha era só trabalho e
reclusão na casa do Jorjão e o filho entregue praticamente aos cuidados do
religioso. Tinha aulas de catecismo e de piano exclusivas com o próprio padre.
Para o Nenéu era Deus no céu e Jorjão na terra, a quem chamava de Dinho. Era um
amor recíproco que, à medida que o tempo passava, fazia aumentar os rumores de
uma relação espúria entre os dois, incompatível “com a moral e bons costumes do
município”, como a Folha de Marechal, hebdomadário local, insinuou ao cobrar do
pároco uma vigilância mais ativa do comportamento de seus paroquianos. Coisa
assim sem sentido, encobrindo, na realidade, o objetivo visado que já povoava as
mentes de quase toda a pequena população, no perímetro, digamos, urbano.
Foi quando um enfarte fulminante
deu cabo à vida do padre Jorjão. Mais uma morte neste curto conto, sem contar as
mortes aludidas dos pais da Terezinha. Esses infaustos acontecimentos não devem
ser entendidos como expediente barato de contista amador, que mata os
personagens quando quer mudar o rumo da história. Assim é a vida! As exéquias se
deram na capital, onde foi enterrado. Vida sedentária, apreciador de um bom
churrasco e – agora se sabe – carregando uma carga genética propícia a acidentes
cardiovasculares, são informações que justificaram o seu desaparecimento
precoce, fato este profundamente lamentado pelo narrador, para provar que ele
não tem nada ver, só a escrever, com o desenlace do nosso saudoso pároco.
Com o desaparecimento do padre, um certo
alívio alastrou-se pelas gentes do lugar, logo quebrado, quando se soube que
Terezinha estava postulando na Justiça da Capital, para onde se mudara, ser a
herdeira universal dos bens do falecido, localizados em Vitória, não muita
coisa, mas o suficiente para irem levando a vida, dela e do filho comum com
Jorjão - os exames de DNA solicitados pela Justiça atestaram a descendência de
Leléu – assim como, passados cinco meses, a do bebê que nasceu, de igual código
genético.
Toda uma cidade foi enganada com as
especulações maldosas sobre a orientação sexual do padre Jorjão, inclusive,
presumo, alguns dos incautos leitores.
Uma das habitantes do lugar, das mais ativas
alcoviteiras, chegou a dizer:
- Que coisa mais antiga esse caso do vigário!
Já não se fazem mais padres como ATUALMENTE!
Genserico Encarnação Júnior
Itapoã, Vila Velha
(ES), dezembro de 2002.
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