ANO IX - Nº. 265, em 30 de dezembro de
2010.
"Doideira"
ONÍRICA
Esta é a
cidade do meu sonho, o que não quer dizer que seja a dos meus sonhos. Foi como
me ocorreu num sonho esdrúxulo, como acontece com quase todos. Um sonho maluco,
segundo nossa razão pretensamente sã e não de acordo com as outras camadas mais
profundas do cérebro, como a do subconsciente complexo e submerso que, por
vezes, tememos.
Onírica, como a
apelidei para efeito desta crônica, era um ponto chave de uma longa viagem que
empreendera sozinho. Nesse tipo de viagem a gente anda só. Tinha que passar por
ali e ali parar para pagar certo imposto de passagem, uma espécie de pedágio.
Era quase meio-dia e tinha que chegar antes das doze ao posto fiscal, porque,
senão, só depois do recesso do almoço, incluindo a sesta dos funcionários, é que
eles retornariam ao trabalho, isto é, às quinze horas. Aumentei a velocidade,
mas assim mesmo só cheguei ao local da coletoria poucos minutos depois do seu
fechamento.
Então, restou-me dar
uma volta pela cidade procurando o que comer. Nada encontrei. Ao trafegar pela
rua principal, observei uma série de casas comerciais de vendas ao atacado, de
bom aspecto, com seus donos saudáveis, bem escanhoados, belas barrigas, camisas
de linho brancas em conversas com seus iguais nas portas dos seus
estabelecimentos. Ao lado, bem ao lado, no seguimento da calçada, várias casas
onde se entulhavam pessoas raquíticas, leprosas, aleijadas, tuberculosas, como
em certos asilos de caridade.
No correr daquele
mesmo lado existia uma adega riquíssima, ao final da rua, com uma seleção
variada de vinhos nobres exposta em sua grande vitrina. Essa rua só tinha esse
lado. Não me lembro de ter observado nada do outro lado. Era seguramente um lado
impar, se me permitem a brincadeira.
Não vi casas
residenciais, lojas a varejo de nenhuma natureza, bares, cinemas, livrarias,
cafés, restaurantes, nada. Nem mulheres, nem crianças.
Para matar o tempo
(e que tempão me restava!) até a abertura do posto fiscal, fiquei imaginando
como seria a vida naquele lugar. Ninguém passeava pelas ruas. Ninguém assistia a
um filme em cinema, porque não havia salas de projeção. Não circulavam livros,
porque não havia livrarias. Provavelmente não existisse vida cultural. Talvez
estivessem presos em suas casas vendo tevê ou navegando na Internet, e lendo
integralmente, no banheiro e ao longo do dia, a Veja que todos,
ansiosamente, esperavam aos domingos, para terem o que fazer, comentar e com que
se indignar ao longo da semana.
Dentro do meu sonho,
peguei no sono e dormi meia hora. Durante este tempo tive um pesadelo: o posto
de arrecadação da cidade não abriria mais, por causa de uma greve dos
funcionários, e eu teria que ficar naquele local por muito tempo ainda.
Acordei do sono
sonhado e saí a percorrer o resto da cidade quando deparei com uma manifestação
dos grevistas, à frente do Palácio do Governo. Por mais que buzinasse alertando
a multidão e freasse o carro, os freios não me obedeciam de todo, só conseguindo
diminuir um pouco a sua marcha, sem brecá-lo por completo. Quase atropelei
vários dos manifestantes mais exaltados que ocupavam a rua e que começaram a se
insurgir contra mim e a me perseguir. Fugi, contornando o velho prédio, entrei
por uma portinha lateral e fui salvo pela primeira-dama dum governo antigo que
já terminara havia muito tempo.
De onde eu
estava vindo não mais atinava (Doncovim?). Pensei no quando dali pudesse
sair, pra onde iria? Qual seria o meu destino? Eram muitas as utópicas
possibilidades de escape (Proncovô?).
Com esse sonho, acho
que atingi uma fase intrigante na minha vida já bastante vivida: sou quase
apátrida em meu próprio país, depois de andar desgarrado por aí, sem me fixar em
nenhum lugar por onde passei. Atualmente, não pertenço a nenhum lugar do país,
muito menos fora dele. Flutuo no espaço nacional sem me fixar em nenhum pouso.
Ainda não descobri minha terra sonhada. Ademais, tenho certeza de que ela não
existe. Pasárgadas não há! Acho que foi essa a razão do meu sonho. Ainda bem que
voltei à realidade absurda a qual estou acostumado e saí desse sonho
labiríntico. Mas não tem jeito, tais sonhos vão voltar a me importunar.
Demasiadamente
onírica, substancialmente telúrica, exageradamente lúdica esta descrição! O
exigente leitor pode achar isso um estrupício. Nem tanto! Se não conseguimos
compreender a dita realidade da vida o que dirá tentar conhecer a
subliminalidade dos sonhos. Quanto àquelas três palavrinhas tão sonoras acima,
sensuais proparoxítonas de rimas ricas, tenho tanta afeição por elas que, quando
emprego uma, levo as outras de reboque, sem me preocupar se, assim juntinhas,
fazem algum sentido.
Escolha aleatoriamente um
dos outros textos ao lado para leitura ou releitura. Boa sorte!