ANO IX - Nº. 258, em 10 de setembro de
2010.
Crônica
A SOLIDÃO DO
APOLÔNIO
Se, por um lado,
tenho pena do Apolônio, por força do que vai aqui contado, por outro, nutro uma
grande admiração por esse venerando senhor. Conversar com ele é sempre muito
agradável e uma maneira de incorporar uma filosofia de vida e conhecimentos
generalizados que estão muito bem digeridos e sedimentados em seu grande cabedal
de cultura. Não sei se vocês se lembram, já escrevi sobre esse meu mais novo
amigo de infância em artigos passados, não identifico onde, nesse acervo que vai
se acumulando na história do Jornalego. Não me proponho fazer uma pesquisa nos
inúmeros números (!) anteriores no sentido de evitar incorrer em alguma
contradição; primeiro porque não tenho muita paciência: depois, porque não quero
engessar o presente narrador: deixe-o livre para vender o seu peixe.
Depois que ficou
viúvo e veio morar com uma das filhas em VVV (Vitória-Vila Velha), tornando-se
meu vizinho de porta, tenho acompanhado com frequência o também idoso personagem
em suas caminhadas na beira da praia e com ele conversado bastante, nas famosas
reuniões peripatéticas.
Ele está estranhando
muito o seu novo habitat. Sobretudo porque começaram a achar muito
estranho o seu nome. Não há lugar a que vá em que algumas pessoas não façam um
pequeno escarcéu a respeito do seu nomezinho, quando passam a conhecê-lo. Ele
sabe que ele é um tanto esquisito, mas acha também que as pessoas devam ser mais
civilizadas e discretas quando impactadas com a revelação desse nome um tanto
esdrúxulo, mas não tão difícil de escrever ou pronunciar. Até de memorizar é
bastante fácil. Aliás, ele costuma medir o grau de educação das pessoas pela
reação que sentem quando são apresentadas ao seu nome. Se nada dizem, nota dez
em educação e alteridade. Se não... “Imagine, diz, se eu sou portador de algum
outro defeito de nascença!” No que prorrompi numa estentórea gargalhada.
A sua saga começa
quando, após ficar viúvo, veio morar com a filha, vindo de um estado do sul.
Mas, na realidade, vive numa solidão terrível, daí porque se apega aos livros e
ao cinema. Em compensação é muito bom de cama. Dorme como uma inocente criança.
À tarde e à noite, quando vai de nove às nove, com um intermexxo para o
zizi.
Nas nossas
mais recentes caminhadas no calçadão, tem-me confessado que a sua maior aflição,
no momento, é se julgar na contramão da história já que tem evidências de que
está caminhando na mesma direção que ela está indo.
Por exemplo: ele
gosta do Lula e do seu governo. Acha que igual ao Lula só Getúlio Vargas, que
criou o Estado moderno brasileiro. Agora o Lula tentou recriá-lo depois dos
estragos anteriores. Não obstante, reconhece os defeitos de ambos os governos.
Aqui em VVV, no seu pequeno círculo de relacionamento (inclusive pelas
mensagens que recebe na Internet) todos esculhambam com o “molusco”, como
apelidam o nosso Presidente. Também o chamam de “apedeuta”, mais para demonstrar
o alto grau de ilustração do crítico em relação ao criticado. Ele confere as
pesquisas de opinião e observa que 95% dos entrevistados acham que o governo é
ótimo, bom ou regular. “Nunca antes neste país houve isso!” Diz ele com voz
rouquenha e língua presa, gaiatamente.
Por isso, vai votar
na Dilma. No entanto, TODAS as pessoas com que se relaciona dizem cobras e
lagartos dela. NINGUÉM vai votar nela. Ele é a ovelha negra desse pessoal.
Corrige: rubro-negra. Depois comenta que as últimas pesquisas de opinião dão uma
frente de mais de vinte pontos percentuais para a candidata em relação ao Serra.
Portanto não compreende por que isso não se reflete na sua estatística íntima.
Até eu, o narrador
que lhes escreve, confessei-lhe que não vou votar na Dilma. Simplesmente não vou
votar. Já passei dos setenta anos, não sou mais obrigado a isso, já prescrevi.
Agora deixo aos mais jovens essa incumbência de eleger nossos políticos. – Não
sou como você, Apolônio, que ainda pensa que tem de prestar essa obrigação
cívica. Tô fora! Aliás, por outro lado, sou contra a extensão do voto para os
jovens abaixo dos dezoito anos, da mesma forma que eles não podem dirigir
carros. Especialmente em se tratando de política, ainda estão em processo de
formação. Lembro-me muito bem, com dezoito anos, em minha primeira experiência
como eleitor: votei naquele celerado do Jânio Quadros para Presidente! Pelo
mesmo motivo, sou contra a reduzir a idade de responsabilidade penal para abaixo
dos dezoito anos. Tem candidato que está pregando baixá-la para quatorze. Um
absurdo! Seria como tornar exclusiva a pena de morte para os menores de idade,
uma vez que jamais seriam recuperados, estariam perdidos para o resto da vida. O
princípio básico da justiça é a recuperação, não a punição como vingança. Falei
e disse.
Depois dessas
considerações sobre a minha postura nas próximas eleições, embora ele
concordasse com a parte final, ficou mais deprimido ainda. Senti pena do meu
amigo. Um estranho no ninho!
Numa frase
cheia de artifícios metafóricos, Apolônio retrucou que ele está habitando um
reduto que se parece com uma ilha, que não se deixa contaminar, protegido por um
cinturão sanitário de mar, pelo qual nada passa do resto do país-continente. Tem
a impressão que, nesse grupo de poucos amigos e parentes, funciona uma rede
velada de pressão e patrulhamento; todos seguem a mesma corrente de pensamento,
para não destoar uns aos outros. Um olhar alienígena!
Ele não tem nada
contra a opinião dos outros. Cada um vota em quem quiser. O que ele estranha é
essa unanimidade. Isso não acontece nem na apuração das eleições nas mais duras
ditaduras. “Até você (colocando-me na berlinda), acredito que sucumbiu à sedução
daquela rede, escondendo-se no artifício da não obrigatoriedade do voto para não
expor sua vontade, já que conheço o seu pensamento político.”
Um tanto
irritado diz, finalmente: “Vou-me embora pra Pasárgada”.
Não se surpreendam:
Apolônio é assim mesmo, esquisitão. De vez enquanto é assomado por uns
pensamentos estapafúrdios. Aliás, ele e eu formamos uma bela parelha!