ANO IX - Nº. 256, em 20 de agosto de
2010.
Relato
de viagem (2/2)
AMAZÔNIA AMADA
AMANTE (II – final)
Quanto à única leitura que fiz sobre as peculiaridades
amazônicas, restringi-me, tão-somente, ao prólogo do livro Land of Ghosts
(Terra dos Espíritos), cujo subtítulo, em tradução livre poderia ser “A vida
trançada do povo e da floresta no extremo ocidente amazônico”, do botânico David
G. Campbell. As pesquisas desse cientista americano se limitam a uma pequena
área de
18 hectares
no Acre. Só isso.
Seguem algumas assertivas dessa leitura que me deixaram
fascinado:
·
Há mais diversidade numa folha da região
analisada do que em toda a flora da Antártica (que é de uma pobreza gélida,
todos nós sabemos).
·
Há mais diversidade nessa pequena região
analisada do que em toda a flora dos Estados Unidos.
·
Novas espécies, jamais conhecidas, estão sendo
continuamente descobertas e catalogadas na região analisada. Todas as espécies
botânicas dos Estados Unidos e da Europa estão catalogadas há mais de um século.
Na Amazônia, como esse autor
deixa transparecer (e Euclides da Cunha já tinha dito isso, literalmente, quando
por lá esteve no início do século passado), o Gênesis bíblico ainda não se
completou.
O que não gostei de ler foi uma
citação do que ele classifica de “nacionalismo paranoico” da parte brasileira
como um dos vilões da campanha contra a devastação ambiental da Amazônia. No meu
entendimento, a ausência de nacionalismo consente o colonialismo ou o
imperialismo autoritário do “faça o que digo e não faça o que eu faço”.
O grande poluidor da Amazônia é
a atividade econômica do hemisfério norte: Estados Unidos, Europa e China. O
desmatamento brasileiro também joga um importante papel nessa devastação, não há
como negar. Contudo o grande centro poluidor está fora dos limites da Amazônia.
A Amazônia vem sendo bode expiatório do problema. A solução é globalizante e se
refere à hipertrofia do regime econômico capitalista vigente.
Quando os Estados Unidos
concentram o foco de suas atenções e de suas críticas no norte brasileiro, é
basicamente por que eles não podem ou não querem fazer o seu dever de casa
quanto à diminuição dos gases que suas atividades emanam provocando o
aquecimento global (ou, em decorrência, as mudanças bruscas de temperatura). As
geleiras do Ártico é que estão degelando, não tanto como as da Antártica. O buraco na
camada de ozônio, aparentemente contornado, embora tenha sido registrado nos
céus do hemisfério sul, foi provocado principalmente pelos gases emanados do hemisfério norte.
O mesmo fenômeno acontece com o combate ao narcotráfico, cujo foco é transferido
da impossibilidade de conter o grande consumo doméstico estadunidense para a
produção da droga na Colômbia, o que levou aquele país a intervir, por
consequência, no nosso país vizinho, sob a forma de cooperação militar.
Não gostaria que o brasileiro
assumisse o cinismo americano com esse tipo de considerações que faço nestes
dois artigos. O problema é sério e tem que ser encarado com seriedade por toda a
comunidade internacional.
Os Estados Unidos não assinaram
o Protocolo de Kyoto e nem se empenharam na Conferência de Copenhagen sobre o
meio ambiente. Recentemente, o Senado americano não aprovou legislação que vinha
sendo discutida por lá para apresentar um mínimo de propostas orientadas para
disciplinar os atentados ao meio ambiente naquele país.
No período da viagem ao Acre e Rondônia li o
alentado romance 2666, do falecido (jovem) autor chileno Roberto Bolaño.
O capítulo mais longo trata, jornalística e cansativamente, de centenas de
assassinatos de mulheres, atualmente chamados de assassinatos em série, numa
cidade ficcional, Santa Teresa (que retrata a realidade de Ciudad Juarez) no
norte do México, ao lado da fronteira com os Estados Unidos. As mortes brutais,
seguidas aos estupros das vítimas são de uma estupidez só superada pela
realidade atual em nossos centros urbanos, guerras de ocupação, atos
terroristas, sequestros e consequências perversas do nosso modelo capitalístico
de vida que a gente está careca de ver em nossos noticiários televisivos. Um
exemplo disso é a triste coincidência achada no meio de tanta miséria descrita
no livro, que é anterior a 2003, quando morreu o autor: uma das vítimas tinha
Zamúdio como nome de família, quase o mesmo de Elisa Samúdio, desaparecida, dada
como sequestrada e assassinada, no caso em que o ex-goleiro Bruno do Flamengo
está envolvido. A miséria dos crimes tem como cenário a miséria econômica de uma
região miserável, cujo único sonho alentador é o de escapar desse inferno, pular
o muro fronteiriço, driblar a guarda fronteiriça americana e
emigrar para o paraíso dos Estados Unidos.
Da leitura dessa parte do romance me restou a conscientizarão
mais contundente da fragilidade feminina diante das atrocidades do mundo
masculino. Sem a intenção de apelar para a demagogia feminista, usualmente
empregada pelo discurso machista dissimulado.
Daí para a associação dessa fragilidade com a floresta
amazônica foi um estalar de dedos.
A agressão ambiental é uma fatalidade do processo econômico
capitalístico em que vivemos. É a parte frágil do nosso tipo globalizado de
desenvolvimento econômico. Não há saída, a não ser com a mudança dos padrões
políticos e econômicos em que vivemos e, em grande parte, que queremos viver. Já
descrevi isso num pretensioso poema onde comparei essa saga à de Fausto que
vendeu a alma ao diabo.
Num papo que tive com o interlocutor americano eu defendia a
posição de que a solução do problema só poderia se dar na área política. Só ela,
expressando a vontade humana, pode dar jeito na deterioração ambiental do
planeta. O processo de reorientação não se faz pela integração universal dos
procedimentos individuais corretos ou, de maneira religiosa, entendida como
encontrar valores morais universais, do que seja o “bem” para a humanidade.
Como disse anteriormente, meu interlocutor é reverente ao
culto da Mãe Natureza. Segundo ele, a Natureza, no devido momento, resolverá o
problema. Como? Por meio das pequenas e da grande catástrofe, dos pequenos e do
grande apocalipse, quando ao fim e ao cabo de um ciclo de vida levará ao
nascimento de outro, assim como já aconteceu em outras eras no nosso planeta.
Estupradores que somos,
a continuarmos a sê-lo,
seremos, na devida hora, inapelavelmente estuprados.