Jornalego

 

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JORNALEGO

ANO VI - Nº. 184, em 20 de fevereiro de 2008.

 

Conto

DESTINO

I

            Fui para o Rio de Janeiro, no início da década de sessenta, cursar a universidade. Contudo, por razões que serão conhecidas a seguir, morei por lá por mais um bom tempo. A cidade se confundia com o então Estado da Guanabara, recém-criado quando da transferência da capital do país para Brasília.

            Dividia uma quitinete com um amigo, em Vila Isabel. Transcorria o ano de 1966, e eu fazia o último semestre de Engenharia na antiga UEG (Universidade Estadual). Anos iniciais da ditadura militar, que iria se perpetuar por mais de duas décadas. Como todos os regimes e todos os impérios, ela um dia chegaria ao fim. Pode tardar, mas o fim é inevitável, inexorável.

A juventude da época, mais chegada a um intelectualismo precoce, por vezes pretensioso, freqüentava o Cine Paissandu, na Rua Senador Vergueiro, no bairro do Flamengo. Tais jovens ficaram conhecidos como a Geração Paissandu. Eu vivia intensamente esse momento. Tinha assistido à última sessão de cinema, numa noite primaveril, e voltava para casa. Ia pegar um ônibus elétrico, portanto, percorrer um longo trajeto até o destino final. O elétrico não trafegava pelo túnel Santa Bárbara e o Metrô ainda não existia.

Na saída do cinema, quando passava em frente ao Oklahoma, um bar ao lado, fui chamado por um colega que ali se encontrava a uma mesa, com amigos. Todos nós tínhamos saído da sala de projeção por uma galeria do edifício, a qual desembocava nas banquetas ao longo do balcão ou nas mesas distribuídas pelo calçadão. Estavam exibindo o filme antológico de Agnès Varda, “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur) e só na saída nos encontramos. Fui um dos últimos a sair da sala. Pensativo e encantado com o que vira quedara alguns minutos imobilizado, sentado na poltrona.

Entre as novidades do filme, o diretor era uma diretora. Só uma mulher poderia ousar escrever e dirigir aquele filme, naquela época! Éramos fanáticos apreciadores do Cinema Novo Brasileiro, do Neo-Realismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, com seus geniais diretores: Glauber, Cacá, Rosselini, De Sica, Visconti, Godard, Truffaut e os craques Antonioni e Bergman. Que timaço! Às vezes deixávamos de compreender os filmes, mas como eram esteticamente belos! Aliás, alguns deles, como as músicas, não são feitos para serem entendidos, mas para serem sentidos.

Fui apresentado formalmente a todos da mesa: dois rapazes e Ângela, todos colegas de turma da Faculdade de Arquitetura da PUC. Todos cariocas moradores da Zona Sul.

– Muito prazer, Ângela, mas pode me chamar de Anginha como todo mundo, embora eu não goste muito desse feminino diminutivo. Afinal, anjo não tem sexo, não é mesmo? Mas não me incomodo. É só não confundir com angina, mas isso é gozação dos colegas da medicina.

            Ângela/Anginha me encantou. Sua beleza, sua pele, seus lábios, seus cabelos longos presos num grande rabo de cavalo, seu sorriso, sua voz, seu corpo, que imaginava sem vê-lo todo, sentada que estava na outra extremidade da mesa.

– Muito prazer.

            Estavam a comentar o filme: a visão racional do casal-personagem, a admitir participar de um triângulo amoroso, justificado por fortalecer ainda mais os laços afetivos entre eles e as duas crianças, filhos do casal. Essa idéia, concebida pelo marido, que se apaixonara por outra, aceita por sua mulher, enchia a todos de espanto e, em princípio, de aceitação. Isso era muito civilizado! Muito francês! O grupo ainda não tinha abordado as conseqüências finais desse raciocínio, mostradas ao final da película.

            Por causa do papo gostoso e interminável, perdi a última condução para casa e tive que gastar algum dinheiro, de que sempre carecia, numa bandeira dois de um táxi/fusca, um verdadeiro bólido na madrugada carioca, que me deixou na porta do meu prédio em pouquíssimos minutos. Aliviado!

            Anotei os telefones de todos, numa estratégia simples para ter o número da Anginha. Eu não tinha telefone, era peça rara na época.

            Liguei para ela nos dias seguintes e marcamos um encontro, no mesmo Cine Paissandu, sessão da tarde, para rever o filme, só nós dois. Gostamos mais ainda do que da primeira vez. Aquelas idéias novas, as imagens, o amor sem limites, uma nova proposta de relacionamento, tudo nos empolgou. Fomos, ao sair da sessão, ao Cinerama, um bar pouco mais adiante da galeria e do Oklahoma.

            Nesse encontro nossos corações transbordaram de emoção, cada um dizendo o que achava do outro. A conversa e a inteligência da Anginha me envolveram. “Um beijo então se deu”, selando o cruzamento das mãos o qual já havia ocorrido no escurinho do cinema. Isso está parecendo letra de Lupicínio Rodrigues cantada por Miltinho! Splish, splash, agora me lembro até da sonoplastia, puro Jovem Guarda! Aliás, este conto, em determinadas situações, como se verá, incorporará fundos musicais.

            Outros encontros se seguiram. Dentro de uma semana nos encontramos na quitinete de Vila Isabel. Depois do amor, do desfalecimento que se seguiu, restabelecida alguma lucidez, começamos a conversar. Anginha se confessou apaixonada, nunca imaginara um homem como o que agora tinha em seus braços (tenho humildemente de confessar para ser fiel aos acontecimentos). O seu maior elogio foi quando disse que se surpreendia com o fato de, sensível como sou, estar cursando engenharia quando deveria estar me dedicando a arquitetura. Puxava, evidentemente, a brasa para a sua sardinha.

            No encontro seguinte foi a vez de eu me abrir de forma um tanto diferente. Expressei todo o meu amor sincero por ela e o quanto também me apaixonara. Elogiei, sinceramente, tudo de maravilhoso que eu jamais vira numa mulher. Mas...

            ...lá em Cachoeiro de Itapemirim, minha terra natal, existia uma virginal menina, que eu namorava havia alguns anos; estávamos noivos e íamos-nos casar no início do próximo ano, logo após a minha formatura. Pensávamos morar lá, o enxoval dela já estava pronto, meu sogro nos oferecera uma casa, e o casório estava marcado para ocorrer dentro de seis meses. A despeito dos meus atuais sentimentos, eu não poderia então desistir de tudo. Não iria romper os compromissos assumidos. Como ficamos então?

            Anginha prorrompeu num longo e convulsivo choro, que tentei, sem sucesso, acalmar. Depois caiu em silêncio profundo. Ao se despedir, disse que iria pensar e conversaria comigo no dia seguinte. Não queria tomar uma decisão apressada, ela estava muito traumatizada com a notícia, logo num momento de grande emoção, quando extravasou seus mais profundos sentimentos. Eu fiquei muito tocado também, mas nada tinha a fazer. Cheguei a maldizer a hora em que a conheci. Anginha era um doce de mulher a quem passara a amar também profundamente, embora em tão pouco tempo.

            Encontramo-nos no dia seguinte, depois de um telefonema meu. Desta feita, não fomos ao cinema, nem a algum bar, tampouco ao apartamento em Vila Isabel. Marcamos um encontro no Jardim Botânico, na aléia principal, de onde partimos à procura de um recanto mais propício para discutir o assunto.

            Depois que eu me desculpei, disse dos meus sentimentos para com ela, ela parou um momento e, sem interrupção, disse: – Estou profunda e vivamente apaixonada. Nosso relacionamento é recente, mas eu tenho certeza de que não poderia viver mais sem você, o homem de minha vida, com quem sempre sonhei. Encontrei. Não estou enganada. Não desistirei. Aceito qualquer situação que vier a me propor para ficar com você. Faço qualquer coisa, me submeto a tudo. Compreendo sua situação. Tenho certeza dos seus sentimentos em relação a mim. Confio na reciprocidade do nosso amor. Venha morar no Rio depois de casado, arrume um emprego por aqui. Sem atrapalhar seu casamento, serei amante, concubina, seja lá o nome feio que esse tipo de relacionamento impõe às mulheres, mas eu quero ser sua, só sua, sua mulher, não interessa que você tenha outra. Viveremos felizes, os três. Sua esposa não precisa saber de nada. Se, no futuro, eu tiver você só pra mim, muito bem, se não, muito bem também.

            Terminou o ano de 66; um final de ano pleno de amor, como nunca tivemos até então. Veio a formatura (que Anginha viu de longe, e eu também de longe a vi), e parti para Cachoeiro, para os preparativos finais do casamento. Sobre a possibilidade de vir a morar no Rio, não lhe dei resposta.

            Para evitar despedidas sofridas, parti sem avisar. Soube depois que Anginha fora me procurar em Vila Isabel quando acabou sendo informada pelo meu amigo de minha partida. Ao sair, comprou papel de carta e envelope, sentou-se à mesa de um bar (que, possivelmente, Noel freqüentara e onde escrevera belos sambas sobre as desilusões amorosas), e escreveu um bilhete lacônico. Colocou num envelope e deixou na portaria.

            “Meu amado F., lamentei que você saísse sem se despedir, sem se decidir sobre minha proposta. Espero ansiosamente seu contato. Telefone-me, ou melhor, venha me visitar, logo que puder. Estarei esperando por você e você sabe como: apaixonada e desorientada. Não demore. Ajude-me. Acuda-me.”

            Depois do casamento, da lua-de-mel, do carnaval, voltei inicialmente sozinho. Era meu intento fixar residência no Rio, pretextando a necessidade de adquirir experiência num grande centro. Estava tudo combinado, alugaríamos a casa de Cachoeiro para ajudar no aluguel do apartamento no Rio. Na minha volta, procuraria emprego, possivelmente na mesma empresa em que estagiei. Seria fácil, estava seguro. No fundo, tudo estava voltado para Anginha, e achei que ela se exaltaria quando soubesse da aceitação de sua proposta.

            Fiquei hospedado com o amigo em Vila Isabel. Tive acesso, somente então, com um mês de atraso, ao bilhete que ela havia entregado na portaria. De imediato tentei obter informações. Liguei inicialmente para um dos companheiros daquela noitada no Oklahoma.

            Anginha morrera. Tinha se suicidado. Ingerira dezenas de comprimidos de barbitúricos. Sua família estava perplexa, sem saber as causas do desatino.

Ouve-se um fado.

 

II

 

            Não pode ser! Isso não pode ter acontecido! Chorei, grunhi, mortifiquei-me. Fiquei apoplético por dias. Quando pude concatenar pensamentos, uma idéia me surgiu: como narrador deste conto eu posso orientá-lo para outro tipo de final.

            Foi o que fiz. Na nova versão, meu companheiro de apartamento recebeu o envelope contendo o bilhete de Anginha, telefonou para Cachoeiro, e, a meu pedido, leu-o para mim. Imediatamente, rumei para a agência telefônica e de lá liguei para ela renovando meus sentimentos e informando que aceitara sua proposta. Logo que pudesse, eu voltaria para o Rio para também compartilhar a minha vida com ela, que era tudo o que eu queria.

            Assim está bem. Tudo correu como previ. Tão cedo quanto pude, voltei para o Rio, inicialmente sozinho e me reencontrei festivamente com Anginha, programando a volta (acompanhado), e o estabelecimento da nosso futura relação.

            De fato, isso se deu. Arranjei emprego, passei a administrar o triângulo amoroso que ia muito bem, agindo como esperávamos, inundando-nos de amor, do qual participava, sem o saber, a minha jovem esposa.

            Cheguei a cogitar – e discuti isso com Anginha – da possibilidade de contar à minha mulher o que estava se passando, esperando a sua aceitação, como acontecera no filme. Seria extremamente racional e civilizado pensar dessa forma. Talvez ela agisse como Therese, a esposa da película, que aceitou numa boa a proposição. Pelo menos inicial e aparentemente. Bloqueamos em nossas cabeças o final do filme.

            Mas, antes mesmo de decidir-me por essa confissão, Anginha começou a dar mostras de não aceitar o quadro, sentindo-se descompensada na triangulação, considerando-se, como de fato, o elo fraco e injustiçado da geometria amorosa. Aquele sentimento foi se enraizando na sua cabeça, atormentando-a cada vez mais. Queria, como toda mulher apaixonada, a exclusividade de seu homem.

            A vida passou a ser sufocante para mim e agora eu é que não suportava a situação. Nada deixei transparecer para minha esposa, ainda deslumbrada com a nova vida de recém-casada e com a Cidade Maravilhosa.

            Ouvem-se os acordes iniciais da Quinta de Beethoven: Fate/Destino. Tchan, tchan, tchan, tchan!

            Anginha pôs fim à vida, da mesma forma narrada anteriormente. Tinha me endereçado um bilhete, onde dizia que se identificava mais com a personagem Therese (a esposa, que também se suicidara ao final da trama) do que com a Emilie (a amante), do filme “As Duas Faces do Amor” (ato falho dela).

            Continua a eterna Sinfonia.

 

Pós-escrito do autor: Assim como na vida dita real, também na literatura, o destino das pessoas e dos personagens é imutável.  Não é por se tratar de ficção que o narrador tem o poder de manejar a vida ao seu bel prazer. O que será, será!

 

 

Genserico Encarnação Júnior, 68.

Itapoã, Vila Velha (ES).

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