JORNALEGO
ANO VI - Nº. 176, em 10 de
novembro de 2007
Conto-ensaio
O SER OBSCURO
Um dos personagens que mais me marcou como leitor foi o que
dá nome ao romance “Vida e Época de Michael K.”, do sul-africano J. M. Coetzee,
prêmio Nobel de Literatura de 2003. Michael era o próprio ser obscuro, um pária
da sociedade sul-africana da apartação (apartheid). Se bem me lembro,
negro, pobre, fraco, vivia permanentemente se esquivando de todos, ao mesmo
tempo em que fugia dessa mesma sociedade que o perseguia como um dos seus
inimigos. Subversivo, insubordinado, perigoso para a ordem estabelecida, assim
era tachado e tratado. A sociedade, que não lhe oferecera os meios para ser
diferente, cobrava dele uma atitude diferente. Ele não era violento nem tampouco
terrorista. Simplesmente um pacífico obscuro. Um personagem patético! Numa
sociedade patética!
Na história da literatura há vários personagens obscuros;
talvez, da leitura de alguns desses livros, tenha nascido a minha fascinação e o
meu interesse por esse tipo de pessoas. Eles têm certo charme, nem que sejam
como objetos de estudo. É o que vou tentar mostrar aqui neste conto-ensaio.
Das leituras que fiz lembro-me de Judas, o Obscuro, de
Thomas Hardy; do conto O Homem Obscuro (Natanael), de Marguerite
Yourcenar; da novela Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville; e de
O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. Cada um desses, personagens
obscuros a seu modo.
A obscuridade, a primeira vista, é uma postura ou colocação
negativa e execrável. Contudo, ela pode ser considerada uma atitude positiva, ou
mais corretamente, neutra, diante da vida e da sociedade. Pergunta-se: por quê e
para quê ter uma atitude positiva, ativa ou, como está muito em moda nos dias
atuais, pró-ativa em relação à vida? Será mandatório aderir ao modelo do homo
faber competitivo e vitorioso? E se o vivente não quiser? Deverá ser ele
punido, confinado, sofrer medidas corretivas?
Vejamos algumas opiniões a respeito do ser obscuro.
Primeiramente, considerações um tanto extensas, de Virginia Woolf, em seu
romance Orlando, uma Biografia. Abra aspas. Enquanto a fama tolhe e
constrange, a obscuridade envolve o homem como um nevoeiro; a obscuridade é
umbrosa, ampla e livre; a obscuridade permite que o espírito siga o seu destino,
desimpedido. Sobre o homem ignorado derrama-se a piedosa catarata da
obscuridade. Ninguém sabe aonde ele vai nem de onde vem. Pode procurar a verdade
e dizê-la; só ele é livre, só ele é verdadeiro; só ele está em paz. Feche
aspas.
É tão lindo esse trecho do romance, tão lindamente traduzido
por Cecília Meireles que não devo privar o leitor de mais um pedacinho de
página. Temos tempo e espaço para continuar. Continuemos. Abra aspas. Mergulhado
por muito tempo em profundos pensamentos como os do valor da obscuridade e a
delícia de não ter nome, mas de ser como a onda que retorna ao profundo corpo do
mar; pensando em como a obscuridade poupa à mente os aborrecimentos do rancor e
da inveja; como faz correrem pelas veias as águas livres da magnanimidade e da
generosidade; como permite dar e tomar sem agradecimentos nem louvores; o que
deve ter sido o caso de todos os grandes poetas, (Orlando) supunha, que
Shakespeare devia ter escrito assim, e os construtores de igrejas construiriam
assim, anonimamente, sem necessitarem de agradecimento nem fama, tendo só a sua
obra, durante o dia, e, à noite, talvez um pouco de cerveja. Livre da aflição do
amor desprezado, e da vaidade exprobrada, e dos demais aguilhões e ferrões com
que as urzes da vida o tinham queimado quando ambicionava a fama, mas que não
podiam castigar mais uma pessoa desinteressada pela glória... Feche aspas. Que
beleza!
Como vêem, não sou só eu que se encanta com a obscuridade,
nem que seja como exercício intelectual. Daí o que se segue.
Para prosseguir, imaginemos um personagem que, desde tenra
idade, seja lúcido como não pode ser uma criança, e que carregue essa lucidez,
que se propõe correta segundo sua maneira de ver e de ser, ao longo de toda sua
vida. Para efeito deste ensaio-conto, ele não é louco. É simplesmente lúcido, de
uma forma de lucidez não necessariamente compartilhada pelo senso comum. Um
maluco beleza!
Aqui, nesta parte ficcional do texto, ele não tem e não terá
nome, o que condiz melhor com a sua personalidade. A ficção terá um pobre fio
narrativo para conduzir a história. Ela não tem um pingo de veracidade. Talvez,
quem sabe, na urdidura do conto haja um mínimo de verossimilhança. Penso que, às
vezes, é válido recorrer ao absurdo para captar detalhes que não estão aparentes
numa visão convencional da vida e as coisas. Enfim, um conto hermético, obscuro
também!
O que preside a mente desse personagem é o seguinte: “eu não
aceitei o convite para participar dessa festa a que chamam vida, mas aqui estou,
não vejo saída e, finalmente, sei que a saída me leva de volta ao nada”.
No início da sua vida era tachado de malcriado e genioso. Não
aceitava a educação, os ensinamentos e as vontades de seus pais ou responsáveis
eventuais. Chorava, berrava, esgoelava-se, fazia manha e birra; só fazia o que
bem queria. Comia quando estava com fome. Dormia quando não agüentava mais ficar
acordado. Não respeitava a tentativa de lhe impor horários. Chegou a levar umas
boas palmadas, quando os pais desistiram da pedagogia moderna da educação sem
violência, com exemplos e argumentos, e perdiam a paciência. Sem resultados
satisfatórios.
Assim foi crescendo. Aprendeu a andar e a falar. Continuava a
chorar e a se espernear. Não aceitava roupas novas, quando os presentes e
brinquedos não lhe agravam jogava-os longe ou os destruía. As punições pouco lhe
incomodavam.
A tentativa de colocá-lo num colégio não vingou. Fazia
escândalos, infernizava as classes e os coleguinhas. Optou-se por um preceptor
em casa, uma professora, que não agüentou, desistiu. Enfim, não freqüentou nunca
o colégio nem tampouco aulas de coisa nenhuma.
Lá para os oito/nove anos, folheava revistas, histórias em
quadrinhos e livros que encontrava em casa. Aprendeu a ler por si só. Mais
tarde, na adolescência, começou a ler os bons livros da biblioteca doméstica.
Foi o grande acontecimento tido como edificante da sua vida. Daí em diante não
se sujeitava a mais nada, ficava em casa lendo, fazia suas refeições na copa
quando lhe convinha, não se familiarizava com ninguém. Outra de suas poucas
atividades era sair caminhando pela cidade e arredores, sem rumo, e voltava
quando bem entendia, quando voltava.
Tomava banho quando lhe dava na telha e permitia, quando
queria, o corte de cabelos. Quando ganhou um cortador de cabelos elétrico passou
a raspar os pêlos da cabeça e do rosto.
Insociável ao extremo, não comparecia a lugar nenhum. Não
tinha amigos ou amigas. Não falava com ninguém. Seu único documento de
identidade era a certidão de nascimento tirada e guardada por seus pais. Não se
interessava por notícias veiculadas por jornais, tevês e revistas. Ao tempo do
alistamento militar, não se alistou. Não se tornou eleitor. Não usava dinheiro.
Tinha uma única muda de roupa, a que vestia por vários dias, até que a mãe
recolhia e trocava por outra. Nunca foi a um médico. Não conheceu mulher. Não
teve amores. Pra quê?
A Polícia o prendeu várias vezes por vagabundagem. Isso lhe
era indiferente. As prisões também eram causadas pela inexistência de documentos
e os descumprimentos dos deveres de cidadão. Ignorava completamente tudo. Nada
lhe afetava. Cubículos infectos. Companhia de marginais. Pancadas, má
alimentação, maus tratos, nada era com ele. Ele era “superior”, indiferente a
tudo.
Filho único, depois da morte dos pais, deixou deteriorar por
completo a sua casa, cujo terreno foi tomado por parentes próximos, que se
diziam herdeiros, depois de provarem na justiça a incapacidade dele em gerir
seus bens. Ficou a perambular pelas ruas e comia quando lhe davam algo para
comer. Não mendigava nada.
Por absoluta falta de sociabilidade e interesse era malvisto
e rejeitado por qualquer tipo de grupo, marginais, miseráveis, seja lá o que
fosse. Não consumia álcool nem drogas. Era pacífico tendendo para a
indolência.
Morreu baleado por uma saraivada de tiros, no fogo cruzado
entre traficantes e policiais, no sopé de um morro, subida de favela, onde
passara a noite e ganhara o seu último prato de comida. A crônica policial o
considerou como um dos bandidos, cujos corpos jaziam perfilados na rua, expostos
como troféus de guerra.