Jornalego
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JORNALEGO ANO VI - Nº. 172, em 30 de setembro de 2007
Conto UMA MULHER E UM HOMEM
Passo a palavra, ou melhor, empresto mente e habilidade motora de datilógrafo, para minha porção mulher, um tanto lésbica, o que não elimina sua feminilidade. É uma forma de tornar o texto mais feminino. Não que as mulheres tenham mais sensibilidade do que os homens. Elas não têm esse monopólio. Mas, ao compreender melhor o caso aqui contado, por estar mais afeto à natureza delas, têm possibilidade de expô-lo também melhor. Portanto, com vocês, uma narradora. Desde menininha, nossa principal personagem, tinha paixões avassaladoras. Foi cedo para a escola, o palco desses transportes amorosos. Logo após completar o primeiro ano de vida, freqüentava a creche, seguiram-se o maternal, o jardim de infância, o pré-primário, enfim, aos seis anos de idade já era possuidora de um vasto currículo escolar. Com as pressões da vida moderna, mãe e pai médicos trabalhavam muito, desde manhã cedinho até tarde da noite, muitas vezes fazendo plantões, quando só um dos dois vinha para casa dormir. Não era raro trazerem serviço para finalizar em casa, como preparar a pauta das atividades, das reuniões ou aulas do dia seguinte. Eram também professores universitários. Uma excelente babá, desde o nascimento da filha, cuidava muito bem dela e a tratava com muito carinho. Só nos finais de semana, depois de um sono reparador dos pais, que se estendia até quase o meio-dia, é que a convivência com eles era maior, dando folga para a babá. Nesse período inicial de sua vida, a cada ano que passava, seu coraçãozinho se fixava num coleguinha de turma, com quem estava sempre a brincar, a contar histórias e a sonhar. Juntava-se também às meninas, mas seu favorito era sempre algum garoto que lhe inflamava seus sentimentos infantis de afetividade. Tinha um relacionamento passional com a escola e, quando voltava para casa, ao final do dia, vinha sonolenta e macambúzia para invariavelmente assistir aos seus desenhos na tevê e, em frente desse oratório moderno, prostrar-se e dormir. Dada a ingenuidade desses relacionamentos, não vale a pena nos demorarmos neles. Basta o registro. Por vezes contava à babá as suas preferências, em confissões apaixonadas, apertando-lhe a mão, nunca à mamãe, quase sempre ausente. As obrigações dos pais não permitiam a chegada de um irmãozinho ou irmãzinha. Sempre foi filha única, rodeada de bonecas. O cachorrinho, sempre pedido, sempre lhe foi negado. Seria outra complicação para a boa paz do lar. A chegada da menstruação antecipou-se e antecipou a adolescência da menina. Com onze anos já tinha um namoradinho firme, desses de só vou se você for, andar de mãos dadas, ir ao cinema, freqüentar festinhas dançando de par constante e, eventualmente, uns amassos que não passavam de beijinhos na boca, sem língua. Senhores leitores e senhoras leitoras, não estamos no final do século passado nem tampouco no início deste novo século. Estamos na década dos Beatles, da Jovem Guarda e da Bossa Nova, a gloriosa e funesta década dos sessenta. Gloriosa pela explosão juvenil na música, no esporte e na crença de que o futuro seria a nossa redenção enquanto nação; funesta pela agitação política e, ato contínuo, pelo rufar dos tambores e pelo rolar das lagartas dos tanques de guerra anunciando a grande noite da ditadura militar brasileira. Fui muito amiga dela desde que nos deparamos vizinhas. Fomos para o mesmo colégio ao entrarmos juntas no ginásio. Naquele tempo os cursos básicos eram divididos em primário, secundário e colegial. O ginásio correspondia à segunda metade do primeiro grau de hoje. Seguimos juntas até a Universidade, sempre vizinhas, moradoras do mesmo edifício. Separamo-nos com o seu casamento com Tarcísio, depois que nos formamos. A bem dizer, nunca nos separamos, estamos sempre em contato, agora contando com as facilidades de telefone, Internet e Skype. De sua infância mais remota (e das suas primeiras paixões amorosas), contava-me suas passagens, detalhadamente, nas longas conversas que tínhamos no percurso de volta do colégio. Vínhamos andando por um bom pedaço sem nos atemorizarmos com a possibilidade de assaltos. Foram muitos os seus namoros, enquanto eu especulava sobre como seria meu primeiro amor e um beijo na boca no escuro do cinema. Como custou até que eu arranjasse o meu primeiro namorado! Aliás, tudo se deu graças a ela. Já que apresentei o Tarcísio, é hora de dizer que minha amiga se chama Vera. Ela era (e é) linda, muito mais bonita, alegre, comunicativa do que eu, que praticamente fui sua sombra durante o período escolar. Depois, talvez, não sei, eu tenha me soltado um pouco, quando saí da zona de magnetismo da Vera. Eu era sempre a mais comportada, a mais estudiosa, um exemplo a ser seguido, conforme queria a mãe da Vera. Entre os várias casos amorosos dela (ora vejam só! Casos amorosos! Eram amores quentes para a época, mas nada como a liberalidade afetiva de hoje) vamos concentrar-nos no Tarcísio, porque, para a nossa história, o que interessa é esse relacionamento. Tarcísio era um rapaz alto, inteligente, o primeiro aluno das turmas de que participava. Não se tratava de nenhum tipo atlético, mas tinha o seu charme, mais para intelectual enigmático do que para galã. Namorou outras colegas, mas a Vera o ganhou no último ano do primeiro grau. Namoro que se estendeu até o tempo de universitários. Ele fazendo Ciências Sociais; nós, Comunicação. A Vera deu muito trabalho aos seus pais nessa fase da vida. Festas e escapulidas com Tarcísio, a toda hora e para todos os lugares, de preferência sozinhos e sem aviso prévio. O tempo mais preocupante foi quando o seu namorado passou a dirigir o Fusca do pai, e com a Vera inventavam longos passeios além da pacata zona urbana de então. Vera não entrava em maiores detalhes comigo sobre o que se passava nessas ocasiões. Mas, para me causar inveja, deixava transparecer algo. Não chegaram ao inevitável. Ficavam nos jogos amorosos de mão na mão, mão carinhosa e perscrutadora, boca na boca, boca sedenta e esfomeada, nos limites permitidos pela moral e pelos bons costumes da época, quando os preservativos e absorventes higiênicos eram vendidos às escondidas nas farmácias, e a pílula anticoncepcional dava seus primeiros passos. Casaram-se, enfim. Vera casou-se virgem, segundo me contou. Não tiveram filhos. Conto o que se passou a partir do casório. Formado, Tarcísio se transformou num professor acadêmico de alto conceito no meio intelectual da época. Ao sair da faculdade emendou um mestrado e, a seguir, um doutorado. Entre as suas atividades, quando se deu o ápice desta história, estava escrevendo um tratado, em prosseguimento às suas teses anteriores, onde pretendia estudar as migrações internas das populações no Brasil e a formação das grandes massas urbanas metropolitanas, o nascimento dos conglomerados habitacionais periféricos e das imensas favelas. Os movimentos reivindicatórios dos vários grupos organizados e a eclosão da violência nesses centros. Sua atenção e preocupação estavam dirigidas totalmente para esse grande objetivo, que recebia o financiamento generoso de uma fundação americana. Horas e horas de leitura, noites passadas na datilografia dos originais e nas primeiras correções, viagens, encontros, reuniões, palestras etc. sobre o assunto. Vivia intensamente o seu projeto. Diria mesmo que direcionava sua libido para a execução e finalização do trabalho. Uma indiscrição, mais um desabafo da Vera, me fez conhecer alguma intimidade do casal. Ele não queria filhos enquanto perdurasse a ciclópica tarefa que estava empreendendo. Em suas relações sexuais usavam o método da tabelinha para evitá-los e, quando nos dias férteis ou de menor segurança, ele apelava para a camisinha. Foi esse o motivo pelo qual a Vera me confidenciou essas coisas: todas as vezes que ela transava com o marido usando camisinha sofria um apagão, um desmaio que se estendia por alguns bons minutos. Isso só se dava quando a relação era feita com camisinha. De início, o orgulhoso Tarcísio, intimamente se vangloriava, ao pensar que se tratasse de efeito do orgasmo. Mas começou a desconfiar de seu desempenho, uma vez que tal desfalecimento só ocorria quando a transa era feita com camisinha. Levado o caso ao ginecologista, nada foi diagnosticado que justificasse o acontecido. E o desmaio continuou a acontecer toda vez que se fazia uso do preservativo. A vida tem segredos e caminhos que a mais inspirada ficção não alcança. Antes da visita a um psicanalista, que tentaria desvendar o mistério, ela, a vida, já tinha encontrado ramificações alternativas para driblar o problema. O atalho veio em forma de um amigo do casal, com quem conviviam há algum tempo, desportista, alegre, simpático, de nome Guilherme. Foi outra paixão súbita, a última das paixões da Vera. Dos encontros furtivos, gerou-se um filho, que a Vera, numa atitude honesta advertiu imediatamente ao Tarcísio, confessando a existência do novo amor, o que provocou a pronta separação do casal. O novo par com o filhinho, depois de algum tempo, foram morar no exterior, onde ainda se encontram, com mais dois novos filhos, um casal de gêmeos. A vida de Tarcísio tornou-se um inferno. Não terminou o seu enciclopédico tratado. O mais que conseguiu foi editar em revistas técnicas alguns artigos ensaísticos sobre o tema, como a fatiá-lo em pedaços para tentar justificar o tempo e o dinheiro empregado. Entrou numa tremenda depressão, e seu fim foi lamentável, definhando de amor, na ausência da querida Vera. Morreu ainda jovem com aparência de velho, sem nunca se fixar em outra mulher. O amor que ele dedicava à mulher era de outra natureza, diferente do que ela sentia. Quase que eu disse de outro gênero. Parece-me que a vida atacou-os com toda sua realidade e força. Quase todo amor é amor pela vida. Como ela é, e não como gostaríamos que fosse. Quase toda repressão é repressão à vida. Sem atinar racionalmente para o problema, os genes egoístas, muito mais egoístas do que os seres por eles constituídos, baixaram no pedaço exigindo do amor a perpetuação da espécie. A grande e mais completa forma de amor. O resto é romantismo. A forma desse protesto veio por meio dos desfalecimentos constantes quando essa possibilidade era bloqueada. Tarcísio entendia o amor como algo alheio ao código da vida. Coisa que dificilmente uma mulher se deixa enganar, mesmo que seja inconscientemente. Se for retirada a camada superficial que encobre este conto, qual num palimpsesto, e considerando a mania do autor em “convidar” atores e atrizes para encenar esse tipo de conto, pergunta-se: os personagens Tarcísio, Vera e Guilherme, lembram a você a história de que casal ou de que triângulo amoroso famoso?
Nota do autor: Neste conto (“Uma Mulher e um Homem”) quis dar ênfase a um traço da psicologia feminina, enquanto num anterior (“Um Homem e uma Mulher”), priorizei um aspecto da psicologia masculina. O caso clínico citado no primeiro conto, bem como o que foi relatado num mais antigo (“O Drama do DNA”), a saber: os desmaios da personagem na primeira história e o exame de DNA na segunda são reais, contados que me foram por um médico. Contudo é escusado dizer que tudo o mais não passa de ficção. Inclusive a interpretação psicológica deste presente conto, pura criação literária de um leigo no assunto.
Clicando nesses atalhos você terá acesso aos textos citados nesta nota:
http://www.ecen.com/jornalego/no_91_o_drama_do_dna.htm
http://www.ecen.com/jornalego/no_169_um_homem_e_uma_mulher_br.htm
Genserico Encarnação Júnior, 68. Itapoã, Vila Velha (ES)
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