Jornalego

 

Página Inicial
N° 360: O Presente é o Futuro
N° 359: Nave/ave partindo
N° 358:Sua Eminência Reverendíssima
N° 357: Não Dito
N° 356: Memórias de um Leitor
N° 355: Assim se passaram doze anos
N° 354: Ron Mueck
Nº 353: Fúria
Nº 352: Porta-vozes
Nº 351: Um filme e um livro
Nº 350: Bakhtin etc.
Nº 349: Boas Fadas Há
Nº 348: Uma História Incrível
Nº 347: Carta de Alforria
Nº 346: Pretérito mais-que-perfeito do futuro
Nº 345: 1930-1946-1964-1988 - V
Nº 344: 1930-1946-1964-1988 - IV
Nº 343: 1930-1946-1964-1988 - III
Nº 342: 1930-1946-1964-1988 - II
Nº 341: 1930-1946-1964-1988 - I
Nº 340: Especulações Conceituais
Nº 339:Discurso de Despedida
Nº 338: Plebiscitando-me
Nº 337: Francisco
Nº 336: Economia Política
Nº 335: Roda Viva
Nº 334: Eduardo e Mônica
Nº 333: Surfando a Onda
Nº 332: Bodas de Ouro
Nº 331: Gritos do Desassossego
Nº 330: O Papa e o Passarinho
Nº 329: O Tempo Redescoberto
Nº 328: Grifos do Desassossego
Nº 327: Desovando Poemas
Nº 326: O Sobrado Assombrado
Nº 325: Amor
Nº 324: A Realidade da Ficção
Nº 323: Explosões de Catedrais
Nº 322: Rendez-vous com Papai Noel
Nº 321: Nas Cordas da Minha Lira
Nº 320: Sessão de Teologia
Nº 319: Eros e Tanatos
Nº 318: A Caixa de Pandora
Nº 317: Sísifo
Nº 316: Prometeu
Nº 315: Novos Contos de Minha Autoria
Nº 314: Os Contos de Minha Lavra
Nº 313: Comparações Espúrias
Nº 312: Ainda com Ulysses
Nº 311: Ainda na Estrada
Nº 310: Na Estrada com Ulysses
Nº 309: Com Ulysses na Estrada
Nº 308: Doca
Nº 307: Melancolia
Nº 306: Amor de Novo
Nº 305: A Maldição de Ateneu
Nº 304: Barba em Cara de Pau
Nº 303: Admirável Mundo Novo
Nº 302: A Doutrina Kissinger
Nº 301: Poesia Moderna
Nº 300: Jornalego Dez Anos
Nº 299: Catecismo Capitalista
Nº 298: Alegria do Palhaço
Nº 297: Chinatowns
Nº 296: China
Nº 295: Os ginecologistas também amam
Nº 294: A Sétima Arte
Nº 293: Sexo Complexo com Nexo
Nº 292: O Legado de Apolônio
Nº 291: Empregos & Portões
Nº 290: Dodora
Nº 289: Envelhecer é para Macho
Nº 288: Borges, Swedenborg e Eu
Nº 287: O Mistério da Rua Pera
Nº 286: Ódio
Nº 285: Despojamento
Nº 284: Contestando o Senso Comum
Nº 283: Os Sobreviventes
Nº 282: Ode às Primaveras
Nº 281: Cinema
Nº 280: Platônico, Virtual, Onírico
Nº 279: Até que a morte os separe
Nº 278: O Socialista e a Socialite
Nº 277: Frio
Nº 276: Osama x Obama
Nº 275: Esperando Godot
Nº 274: Sarah Vaughan em Vitória
Nº 273: Assino em Baixo
Nº 272: Horror! Horror!
Nº 271: O Dia da Minha Morte
Nº 270: Folhetim - V - Final
Nº 269: Folhetim - IV
Nº 268: Folhetim - III
Nº 267: Folhetim - II
Nº 266: Folhetim - I
Nº 265: Onírica
Nº 264: Mingau
Nº 263: O Haiti é Aqui
Nº 262: Fé e Crendice
Nº 261: Reflexões ao Espelho
Nº 260: Meu Mulato Inzoneiro
Nº 259: Coetzee
Nº 258: A Solidão do Apolônio
Nº 257: O Candidato Ideal
Nº 256: Amazônia Amada Amante - II
Nº 255: Amazônia Amada Amante - I
Nº 254: Crônica, Livro, Sonho e
Nº 253: Fé e Razão
Nº 252: Vida que te quero Viva
Nº 251: Libertadores da América
Nº 250: Tema do Traidor e do Herói
Nº 249: Apanhador no Campo de Centeio
Nº 248: DNA Guerreiro
Nº 247: Brasília, Brasil
Nº 246: Cecília e Eu
Nº 245: O Fado de Fausto
Nº 244: Gnaisse Facoidal
Nº 243: Histórias Hilárias
Nº 242: Tia Amélia
Nº 241: Mensagens do Além
Nº 240: Vocação
Nº 239: Socialismo pela Culatra
Nº 238: Apolônio Volta a Atacar
Nº 237: Contrastes
Nº 236: O Sonho Acabou
Nº 235: Efêmero Demasiado Efêmero
Nº 234: Última Paixão
Nº 233: Contus Interruptus
Nº 232: Os Atores
Nº 231: Entre Coxias
Nº 230: Lançamento de Livros
Nº 229: A Dignidade dos Irracionais
Nº 228: Pena, Pena, Pena
Nº 227: Caros Amigos
Nº 226: Cartas Antigas
Nº 225: O jovem que queria ser velho
Nº224:O menino que não queria ser gente
No 223: Epílogo & Prólogo
No 222: O Deus dos Animais
No 221: Da Caderneta Preta
No 220: O Prisioneiro da Vigília
No 219: A Escalvada
No 218: O Muro
No 217: O Prisioneiro do Sonho
No 216: Jornal/ego - 7/70
No 215: Eros e as Musas
No 214: Um Sujeito Muito Estranho
No 213: O Lirismo dos Besouros
No 212: Tema de Gaia
No 211: Exa. Revma., Excomungai-me
No 210: Até Tu Brutus!
No 209: Cegueira Paradigmática
No 208: Dos Poemas Impublicáveis
No 207: Países Baixos
No 206: Que Delícia de Crise!
No 205: Assim se Passaram os Anos
No 204: Humano, Demasiado Humano
No 203: O Brasil vai virar Bolívia
No 202: Ensaio s/ a Cegueira e a Lucidez
No 201: ¿Por qué no Hablar?
No 200: O Tempo não se Bloqueia
No 199: Relatos de uma Viagem
No 198: O Tempo Bloqueado
No 197: Tempos do Futebol
No 196: Por um Tempo Ecológico
No 195: Pesos e Medidas
No 194: O Fascínio da Literatura
No 193: Bom Apetite
No 192: O Mural
No 191: Retrato de Mulher
No 190: Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
No 189: Existencialismo Caboclo
No 188: Danação
No 187: Saga
No 186: Redenção
No 185: Por que não Callas?
No 184: Destino
No 183: O Frade Ateu
No 182: O Retrato do Artista
No 181: O Retrato de minha Mãe
No 180: O Retrato de meu Pai
No 179: Mensagem de Fim de Ano
No 178: O Admirável Mundo Wiki
No 177: O Futebol da Integração
No 176: O Ser Obscuro
No 175: Uma Mulher e Uma Mulher
No 174: Um Homem e Um Homem
No 173: Cidadela Sitiada
No 172: Uma Mulher e Um Homem
No 171: Literatura de Apoio
No 170: Porque nao sou Religioso
No 169: Um Homem e Uma Mulher
No 168: Fogo Vivo
No 167: O Contrato Social
No 166: Humana Humildade
No 165: Espelho em Mosaico
No 164: Colcha de Retalhos
No 163: Infância
No 162: O DNA do Petróleo
No 161: Amor Ponto com Ponto br
No 160: O Moderno é Antigo
No 159: "Big Brother"
No 158: Nongentésimo Nonagésimo Nono
No 157: A Morte é para Todos
No 156: O Velório
No 155: Movimento dos Sem-Chapéu
No 154: Xarás
No 153: Amigo
No 152: Madame Hummingbird
No 151: Morte e Vida Severina
No 150: Capitalismo Global
No 149: Na Ponta da Língua
No 148: Pelas Costas do Cristo
No 147: Moral da História
No 146: Antes do Antes e Depois do Depois
No 145: Cerimônia do Adeus
No 144: Ode ao Sono
No 143: Ideologias
No 142: Reminiscências
No 141: Fé Demais & Pouca Fé
No 140: Biocombustíveis
No 139: Quarto de Despejo
No 138: Pavana para um irmão
No 137: Anorexia Eleitoral
No 136: O Mundo é um Moinho
No 135: Habitantes de Bagdá
No 134: Sonata ao Sol
No 133:Bodas de Jacarandá
No 132: Assim também não!
No 131: Reflexões Gasosas
No 130: Vovó Maluca
No 129: De Causar Espécie
No 128: Lula vai Raspar a Barba
No 127: O Pregoeiro de Itapoã
No 126: A República dos Sonhos
No 125: O’
No 124: Rio de Fevereiro
No 123: Seu Boiteux
No 122: Loquacidade Onírica
No 121: Os perigos da literatura
No 120: Entre o céu e a terra
No 119: Globanalização
No 118: Nojo e Luto
No 117: Meu Caso com a Super Star
No 116: Da informação. Do conhecimento. Da sabedoria.
No 115: O Último Tango
No 114: Pelo Sim pelo Não
No 113: Curriculum Vitae
No 112: Eterna Idade
No 111: Guanabara
No 110: Corrupção, Corruptos e  Corruptores
No 109: Quem tem medo de MRS. Dalloway
No 108: O Equilibrista na Corda Bamba
No 107: Conto no Ar
No 106: Divagações Amazônicas
No 105: O Espírito Santo vai virar Bolívia
No 104: "Tristes Trópicos"
No 103: Super-Heróis
No 102: Ilusões Perdidas
No 101: Praia das Virtudes
No 100: Sem
No 99: Brainstorming
No 98: Il Papa Schiavo
No 97: Samba-Enredo
No 96: Decamerão
No 95: Comentários Econômicos
No 94: Batismo Laico
No 93: Boa Convivência
No 92: Tsunamis
No 91: O Drama Do DNA
No 90: Natureza Viva
No 89: Educação Sentimental
No 88: Transbordamentos e Pressentimentos
No 87: A Volta e a Volta de Washington Luiz
No 86: Eros & Onã
No 85: A Viagem
No 84: Soy Loco por ti America
No 83: Mote (I)
No 82: ACRE Telúrico e Emblemático
No 81: Bigode
No 80: Golpes Cruzados
No 79: Rio de Julho e Agosto
No 78: Estado Pequeno Grandes Empresas
No 77: Dinossauro
No 76: Vida Leva Eu
No 75: Quando pela Segunda Vez Lula Treme na Base
No 74: Quotas? Sou Contra!
No 73: Indignação
No 72: O Outro
No 71: Memórias Postumas
No 70: A Outra
No 69: Ave-Maria
No 68: O Enxoval
No 67: Satã e Cristo
No 66: O Buquê
No 65: Belo Horizonte 2
No 64: Belo Horizonte
No 63: O Dia Que Nunca Houve Nem Haverá
No 62: Eletra Concreta
No 61: Motim A Bordo
No 60: O Sul do Mundo
No 59: Conto de Ano-Novo
No 58: O Capelão do Diabo
No 57: Um Ano-Lula
No 56: Conto de Natal
No 55: Desemprego
No 54: Inflação
No 53: O Tempo Poetizável
No 52: Pendão da Esperança
No 51: O Terrorista de Itapoã
No 50: Vícios
No 49: Nós
No 48: Discurso
No 47: Especulação Retrospectiva
No 46: Meu Tipo Inesquecível
No 45: Especulação Prospectiva
No 44: Branquelinha
No 43: Cara a Cara Carioca
No 42: Aquiri
No 41: Iá! Ó quem vem lá!
No 40: O Guardião
No 39: Questão de gênero
No 38: O Fescenino Papalvo
No 37: Imigrações
No 36: A Vigília e o Sono
No 35: O Novelo da Novela
No 34: O Pianista
No 33: Fast Love
No 32: O Nada
No 31: Movimento
No 30: Bagdá
No 29: Literatura
No 28: Estações
No 27: Conto do Vigário
No 26: Cenas da Infância
No 25: FHC.
No 24: Fazendo Chover
No 23: Fênix.
No 22: Operação Segurança
No 21: O Mundo Encantado da Loucura
No 20: O Mundo Encantado da Velhice
No 19: O Mundo Encantado da Infância
No 18: O Povo no Poder
No 17: Monteiro Lobato
No 16: Álcool Revisitado
No 15: Ficção ou Realidade
No 14: Analfabetismo
No 13: De Cabeça para Baixo
No 12: Candidatos e Partidos
No 11:Ao Fundo Novamente
Extra: Acre Doce
No 10: Jacques
No 9: Carta ao Professor N.
No 8: Viagem a Outro Mundo
No 7: do Prazer
No 6: Os Fins e os Meios
No 5: O Tempo da Memória
No 4: A Mulher do Romualdo
No 3: Voto Aberto
No 2: Malvadezas
No 1: O Sequestro
O Autor
Download
Favoritos

 

JORNALEGO

ANO V - Nº. 130, em 30 de Maio de 2006.

 Crônica/conto *

 

VOVÓ MALUCA

            Seu apelido tem origem na junção das duas primeiras letras dos nomes de seus três netos: Marco, Luciano e Carlo, filhos de sua filha única que, casada com um oriundi, mora na Itália. 

            Vovó Maluca, a controversa personagem desta crônica, casou-se jovem e jovem ficou viúva. Tinha cinqüenta anos. Hoje está chegando aos sessenta. Não vou revelar o seu nome. Vou dedicar mais um parágrafo para melhor situá-la.  

            Terminou o ensino básico em colégio de freiras. Nunca trabalhou como profissional. As boas condições econômico-financeiras do marido lhe permitiram essa situação.  Antes do nascimento da filha cursou a Faculdade de Belas Artes. Depois que a filha cresceu submeteu-se a outro vestibular e fez Assistência Social. Vivia muito bem, em ótima casa, muito bem localizada.  Pertencia ao lado afluente da sociedade local, pela tradição de sua família e de seu marido, bem como pela privilegiada situação que usufruíam. Não se expunha muito, sempre foi discreta.  

Mais uma palavrinha sobre o marido: excelente, amigo, apaixonado, companheiro, alto astral, ótimo humor, morreu em acidente de trabalho: queda de helicóptero. O casal chegou a completar suas bodas de prata, o que passou sem comemoração.  

Chega! Vamos ao que interessa. 

            Aqui começa o que tenho a contar, sobre quem muito admiro e invejo. Foi no campus da universidade que a conheci quando eu fazia o curso superior. Sempre nos mantivemos em contato, em reuniões sociais ou familiares, às quais era convidado, trocando livros ou discutindo assuntos diversos. Ela preenchia minha vida de celibatário tímido. 

            Amante de literatura, principalmente de romances e de contos, privilegiava os autores nacionais e portugueses, pois não gostava de ser leitora de segunda mão, por meio de traduções, embora lesse, não com a facilidade do vernáculo, livros em inglês e espanhol, só dispensando alguns de linguagem mais complexa. Não obstante, dedicava-se a todo tipo de literatura, a despeito das traduções. Lia um livro atrás do outro, até quando esperava o elevador. 

            Gostava da literatura latino-americana, dos grandes romances ingleses e dos escritores russos. Não gostava de livros de auto-ajuda; nunca leu Paulo Coelho. Sobre esse último autor, escudava-se no que dizia José Mindlin: “li e não gostei!”, contrapondo ao mais comum: “não li e não gostei!”. 

            Entremeava tais leituras com alguma cousa sobre história e ciência. Alguma biografia. Filosofia light. Poesias pouco herméticas. Assim foi construindo a sua cabeça madura. 

            O que continha essa cabeça possivelmente branca, pintada com esmero e discrição para não destoar de um rosto belo e jovem? Um profundo ceticismo quanto à evolução da humanidade, independentemente de seu progresso material, científico e tecnológico. Priorizava a razão sobre a emoção, sem desdenhar desta última, compreendendo-a como um sentimento inseparável do ser humano e quase que incontrolável embora passível de manipulação fácil. A intuição faz parte da razão, dizia, com isso demonstrando que sua razão não era lá tão cartesiana assim. 

            Aquele ceticismo se limitava à esfera intelectual. Politicamente e em convívio com outras pessoas passava otimismo. 

            Lá pela altura dos quarenta anos “converteu-se” ao ateísmo com convicção. Repudiou todos os ensinamentos religiosos que recebera e a prática de um catolicismo que lhe rendera alguns anos de psicanálise. Para o público externo se rotulava não-religiosa, agnóstica, pois dizia que tanto a crença quanto o ateísmo eram questões de fé, ninguém podia provar nada. Irritava-se quando alguém a chamava de materialista. Isso ela associava a quem se prendia ao dinheiro, à propriedade e à riqueza e não se interessava pelas relações humanas, pelos sentimentos, pela arte. Não é necessário ser religioso para ter sensibilidades dessa ordem.  

            Sofrera muito nos seus amores de solteira e no casamento. Apaixonava-se perdidamente pelos namorados, mesmo os que duravam um só carnaval. Jovem irrequieta, personalidade forte, chegara ao casamento com algumas poucas experiências sexuais que sua impetuosidade e curiosidade jamais poderiam ser contidas. Nem tampouco a sociedade burguesa e conservadora de seu tempo e lugar conseguiriam. Saiu deles machucada e entrou esperançosa num casamento que julgava o sétimo céu. 

            O bom e jovem marido tinha também sua fogosidade e algumas infidelidades foram se não comprovadas, no mínimo, deduzidas. Sofreu por sua total fidelidade no casamento. Pela observação e comentários dos mais idosos, tinha certeza de que os casamentos só se estabilizam depois de trinta anos de vida em comum. Esperava por tal, pelo amor que devotava ao marido, e assim aguardava por esse tempo que nunca chegou.  

            Agora evitava qualquer tentativa de aproximação de um novo amor. Citava cantando os versos do Chico: “Chego a mudar de calçada, quando aparece uma flor, e dou risada do grande amor”. Não que desconsiderasse a nobreza desse sentimento, simplesmente não queria pagar o seu preço.

 

            Morava sozinha num novo e grande apartamento, seu “tugúrio”, como o chamava. Saía com amigas e amigos, era sociável, estava sempre com os familiares. Não gostava de viajar depois de ter conhecido grande parte do mundo, inclusive o que poucos brasileiros conhecem: a vizinha América do Sul, com a lamentável exceção das antigas Guianas. A viagem agora se dava para dentro de si, com o auxílio da literatura. Lendo e escrevendo. Revoltou-se com as últimas viagens à Europa e aos Estados Unidos que considerava ainda colonizadores a escorchar os outros povos do mundo de várias maneiras, inclusive por meio do turismo. Não seria ela que iria participar dessa transferência de recursos. Limitava-se às viagens bienais à casa de sua filha. Num ano a recebia aqui, no outro lá ia ela: um pulo lá, outro cá. Visitas familiares. Nada de turismo.

 

            Na sua solidão e no seu ócio criadores, lia, escrevia e ouvia músicas que, duvido, poderia compartilhar com marido, filhos ou qualquer outra pessoa que, por acaso, viesse a morar com ela. Não trocava isso por nada, dado que aqui chegara levada pela vida. Cultuava e cultivava o silêncio!

 

            Escrevia para si própria, eventualmente para os pósteros, embora sempre dissesse que não gostaria de deixar nem sequer memórias. Mas não escrever, quem, com aquela personalidade, haveria de? Gravava seus textos em CD e tinha como leitores sua filha e a mim, para quem mandava contos, crônicas e artigos pela Internet. Era sua válvula de escape. Publicar algo lhe soava exibicionismo.

 

            Adorava cinema e teatro. Há muito não assistia a uma peça. Sua cidade só lhe propiciava teatro de péssima qualidade, com astros e estrelas de telenovelas a fazer gargalhar platéias sedentas de celebridades e de riso fácil. Quanto a cinema, as salas de projeção da cidade privilegiavam filmes pipoca e de ação. Adorava filmes-cabeça.

 

            Por seu posicionamento intelectual e político, vivia constantemente em conflito com as pessoas de seu círculo. Contudo o maior ponto de atrito, inclusive com alguns dos amigos mais chegados, era por causa de sua visão política.

 

            Sua posição sempre fora de esquerda desde os tempos das faculdades. Sua quimera, o socialismo. Considerava o sistema capitalista o culpado de todas as mazelas mundiais: as guerras, o colonialismo, o imperialismo, a degradação ambiental, o consumismo, o acirramento das contradições e defeitos humanos.

 

            Por isso sempre votara em partidos de esquerda e defendia propostas que qualificava, à falta de outros adjetivos, de progressistas. Ultimamente vinha preferindo o Partido dos Trabalhadores e votou quatro vezes no Lula, até a sua eleição final.

 

            Decepcionou-se com o seu governo. Nem tanto pela tentativa corrupta de dominar a máquina do estado, o que logicamente condenava. Mas pela continuação de uma política neoliberal de subserviência aos donos do poder mundial e mais precisamente ao seu sistema financeiro. A devoção ao deus mercado. Esperava a mudança que não veio. Irritava-a a ausência de um projeto de nação. Detestava o estatuto da reeleição e não votará novamente no Lula. Não sabe em quem votar para presidente, nem sequer se o fará.

 

            Chegava às raias da exasperação quando falava no Bush e em suas incursões armadas no Oriente Médio. Olhava com bons olhos a atuação de Chávez na Venezuela, enquanto ele não se intrometia nos negócios dos demais países sul-americanos. Defendia as intenções do presidente boliviano, Evo Morales. Desde sua criação, a Bolívia fora explorada: salitre, prata, estanho e agora gás e petróleo. Durante todo esse tempo, o povo daquele país jamais se beneficiara com isso. O Brasil precisa compreender bem essa situação nas negociações com aquele país, sem tirar onda de aprendiz de imperialista. Defendia com unhas e dentes a necessária integração latino-americana, apesar dos obstáculos. Citava a integração européia como exemplo; uma região muito mais conturbada do que a nossa, palco de guerras (duas mundiais), uma babel de idiomas, embora contasse com uma população mais experiente e possivelmente mais culta.

 

            Direitos humanos (contra a pena de morte e comércio de armas), preservação ambiental (e dos animais), reforma agrária (defendia o MST), política afirmativa de quotas e de amparo aos miseráveis sempre provocavam discussões terríveis junto aos seus interlocutores, em vista de suas firmes posições a favor desses temas, invariavelmente contrárias às deles.

 

            Abominava governos autoritários e por isso defendia as instituições representativas de nossa democracia, os parlamentos. Ficou meio ressabiada com a onda de denúncias contra vários parlamentares. Recuou o meio de campo, mas continua uma implacável defensora dos ataques dos audaciosos entusiastas e saudosistas da ditadura. 

Vovó Maluca é também assim chamada pelos seus netos e crianças de uma maneira geral por força das brincadeiras que promove junto a elas. Só que no diminutivo: Vovó Maluquinha, como o personagem de Ziraldo: o Menino Maluquinho.  

Mas não é esse o sentido que enfoco neste texto. Maluca aqui tem a ver com sua personalidade ímpar de independência, seu descortino, sua realidade, seu realismo, sua inteligência inquieta e inquietante.  “Vaca de divinos cornos a sobressair sobre a manada.”  

            Eu sempre a julguei um modelo a ser seguido e assim me abria com ela. Por sua vez, seu modelo, sempre citado, nunca imitado, era Ghandi. Um super-homem! Contava-me ela sobre ele: julgava a amizade e o parentesco fontes de injustiça ao privilegiar pessoas, alimentava-se no que bastasse à sua subsistência sublimando o paladar e o prazer de comer, não dava muita importância à vida e nem conseqüentemente à morte, pregava o sexo frugal (!) etc. 

            Essa perfeição, inacessível aos mortais comuns, ela usava como contra-argumento aos meus elogios rasgados sobre a sua pessoa. Não se considerava absolutamente melhor do que ninguém. 

            Mas ninguém é mesmo perfeito! Vovó Maluca está de amores com uma figura que aportou na cidade com um novo projeto industrial, bem mais jovem do que ela e com quem está de viagem à Itália, a visitar filha e netos. Soube por interpostas pessoas que compareceu a uma audiência papal na Praça de São Pedro e que depois esticaria até Veneza em sua viagem de lua-de-mel. 

Só falta agora votar novamente no Lula, por certo justificando falta de opção.

            Sei lá, acho que esse cara com quem ela está namorando e com quem vai morar não está à sua altura. Ela merecia coisa melhor! Parece-me um conquistador barato, adventício e aventureiro. Não sei como uma pessoa tão equilibrada, lúcida, inteligente, a quem tanto admiro, caiu na lábia desse... sujeito.

 

Enfim, deixa isso pra lá!

 

(*) Um tanto longa enquanto crônica, no entanto, nem tanto conto.

 

 

Genserico Encarnação Júnior, 67.

Itapoã, Vila Velha (ES)

jornalego@terra.com.br

http://www.ecen.com/jornalego

        

  Hit Counter