Jornalego
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JORNALEGO ANO V - Nº. 130, em 30 de Maio de 2006. Crônica/conto *
VOVÓ MALUCA Seu apelido tem origem na junção das duas primeiras letras dos nomes de seus três netos: Marco, Luciano e Carlo, filhos de sua filha única que, casada com um oriundi, mora na Itália. Vovó Maluca, a controversa personagem desta crônica, casou-se jovem e jovem ficou viúva. Tinha cinqüenta anos. Hoje está chegando aos sessenta. Não vou revelar o seu nome. Vou dedicar mais um parágrafo para melhor situá-la. Terminou o ensino básico em colégio de freiras. Nunca trabalhou como profissional. As boas condições econômico-financeiras do marido lhe permitiram essa situação. Antes do nascimento da filha cursou a Faculdade de Belas Artes. Depois que a filha cresceu submeteu-se a outro vestibular e fez Assistência Social. Vivia muito bem, em ótima casa, muito bem localizada. Pertencia ao lado afluente da sociedade local, pela tradição de sua família e de seu marido, bem como pela privilegiada situação que usufruíam. Não se expunha muito, sempre foi discreta. Mais uma palavrinha sobre o marido: excelente, amigo, apaixonado, companheiro, alto astral, ótimo humor, morreu em acidente de trabalho: queda de helicóptero. O casal chegou a completar suas bodas de prata, o que passou sem comemoração. Chega! Vamos ao que interessa. Aqui começa o que tenho a contar, sobre quem muito admiro e invejo. Foi no campus da universidade que a conheci quando eu fazia o curso superior. Sempre nos mantivemos em contato, em reuniões sociais ou familiares, às quais era convidado, trocando livros ou discutindo assuntos diversos. Ela preenchia minha vida de celibatário tímido. Amante de literatura, principalmente de romances e de contos, privilegiava os autores nacionais e portugueses, pois não gostava de ser leitora de segunda mão, por meio de traduções, embora lesse, não com a facilidade do vernáculo, livros em inglês e espanhol, só dispensando alguns de linguagem mais complexa. Não obstante, dedicava-se a todo tipo de literatura, a despeito das traduções. Lia um livro atrás do outro, até quando esperava o elevador. Gostava da literatura latino-americana, dos grandes romances ingleses e dos escritores russos. Não gostava de livros de auto-ajuda; nunca leu Paulo Coelho. Sobre esse último autor, escudava-se no que dizia José Mindlin: “li e não gostei!”, contrapondo ao mais comum: “não li e não gostei!”. Entremeava tais leituras com alguma cousa sobre história e ciência. Alguma biografia. Filosofia light. Poesias pouco herméticas. Assim foi construindo a sua cabeça madura. O que continha essa cabeça possivelmente branca, pintada com esmero e discrição para não destoar de um rosto belo e jovem? Um profundo ceticismo quanto à evolução da humanidade, independentemente de seu progresso material, científico e tecnológico. Priorizava a razão sobre a emoção, sem desdenhar desta última, compreendendo-a como um sentimento inseparável do ser humano e quase que incontrolável embora passível de manipulação fácil. A intuição faz parte da razão, dizia, com isso demonstrando que sua razão não era lá tão cartesiana assim. Aquele ceticismo se limitava à esfera intelectual. Politicamente e em convívio com outras pessoas passava otimismo. Lá pela altura dos quarenta anos “converteu-se” ao ateísmo com convicção. Repudiou todos os ensinamentos religiosos que recebera e a prática de um catolicismo que lhe rendera alguns anos de psicanálise. Para o público externo se rotulava não-religiosa, agnóstica, pois dizia que tanto a crença quanto o ateísmo eram questões de fé, ninguém podia provar nada. Irritava-se quando alguém a chamava de materialista. Isso ela associava a quem se prendia ao dinheiro, à propriedade e à riqueza e não se interessava pelas relações humanas, pelos sentimentos, pela arte. Não é necessário ser religioso para ter sensibilidades dessa ordem. Sofrera muito nos seus amores de solteira e no casamento. Apaixonava-se perdidamente pelos namorados, mesmo os que duravam um só carnaval. Jovem irrequieta, personalidade forte, chegara ao casamento com algumas poucas experiências sexuais que sua impetuosidade e curiosidade jamais poderiam ser contidas. Nem tampouco a sociedade burguesa e conservadora de seu tempo e lugar conseguiriam. Saiu deles machucada e entrou esperançosa num casamento que julgava o sétimo céu. O bom e jovem marido tinha também sua fogosidade e algumas infidelidades foram se não comprovadas, no mínimo, deduzidas. Sofreu por sua total fidelidade no casamento. Pela observação e comentários dos mais idosos, tinha certeza de que os casamentos só se estabilizam depois de trinta anos de vida em comum. Esperava por tal, pelo amor que devotava ao marido, e assim aguardava por esse tempo que nunca chegou. Agora evitava qualquer tentativa de aproximação de um novo amor. Citava cantando os versos do Chico: “Chego a mudar de calçada, quando aparece uma flor, e dou risada do grande amor”. Não que desconsiderasse a nobreza desse sentimento, simplesmente não queria pagar o seu preço.
Morava sozinha num novo e grande apartamento, seu “tugúrio”, como o chamava. Saía com amigas e amigos, era sociável, estava sempre com os familiares. Não gostava de viajar depois de ter conhecido grande parte do mundo, inclusive o que poucos brasileiros conhecem: a vizinha América do Sul, com a lamentável exceção das antigas Guianas. A viagem agora se dava para dentro de si, com o auxílio da literatura. Lendo e escrevendo. Revoltou-se com as últimas viagens à Europa e aos Estados Unidos que considerava ainda colonizadores a escorchar os outros povos do mundo de várias maneiras, inclusive por meio do turismo. Não seria ela que iria participar dessa transferência de recursos. Limitava-se às viagens bienais à casa de sua filha. Num ano a recebia aqui, no outro lá ia ela: um pulo lá, outro cá. Visitas familiares. Nada de turismo.
Na sua solidão e no seu ócio criadores, lia, escrevia e ouvia músicas que, duvido, poderia compartilhar com marido, filhos ou qualquer outra pessoa que, por acaso, viesse a morar com ela. Não trocava isso por nada, dado que aqui chegara levada pela vida. Cultuava e cultivava o silêncio!
Escrevia para si própria, eventualmente para os pósteros, embora sempre dissesse que não gostaria de deixar nem sequer memórias. Mas não escrever, quem, com aquela personalidade, haveria de? Gravava seus textos em CD e tinha como leitores sua filha e a mim, para quem mandava contos, crônicas e artigos pela Internet. Era sua válvula de escape. Publicar algo lhe soava exibicionismo.
Adorava cinema e teatro. Há muito não assistia a uma peça. Sua cidade só lhe propiciava teatro de péssima qualidade, com astros e estrelas de telenovelas a fazer gargalhar platéias sedentas de celebridades e de riso fácil. Quanto a cinema, as salas de projeção da cidade privilegiavam filmes pipoca e de ação. Adorava filmes-cabeça.
Por seu posicionamento intelectual e político, vivia constantemente em conflito com as pessoas de seu círculo. Contudo o maior ponto de atrito, inclusive com alguns dos amigos mais chegados, era por causa de sua visão política.
Sua posição sempre fora de esquerda desde os tempos das faculdades. Sua quimera, o socialismo. Considerava o sistema capitalista o culpado de todas as mazelas mundiais: as guerras, o colonialismo, o imperialismo, a degradação ambiental, o consumismo, o acirramento das contradições e defeitos humanos.
Por isso sempre votara em partidos de esquerda e defendia propostas que qualificava, à falta de outros adjetivos, de progressistas. Ultimamente vinha preferindo o Partido dos Trabalhadores e votou quatro vezes no Lula, até a sua eleição final.
Decepcionou-se com o seu governo. Nem tanto pela tentativa corrupta de dominar a máquina do estado, o que logicamente condenava. Mas pela continuação de uma política neoliberal de subserviência aos donos do poder mundial e mais precisamente ao seu sistema financeiro. A devoção ao deus mercado. Esperava a mudança que não veio. Irritava-a a ausência de um projeto de nação. Detestava o estatuto da reeleição e não votará novamente no Lula. Não sabe em quem votar para presidente, nem sequer se o fará.
Chegava às raias da exasperação quando falava no Bush e em suas incursões armadas no Oriente Médio. Olhava com bons olhos a atuação de Chávez na Venezuela, enquanto ele não se intrometia nos negócios dos demais países sul-americanos. Defendia as intenções do presidente boliviano, Evo Morales. Desde sua criação, a Bolívia fora explorada: salitre, prata, estanho e agora gás e petróleo. Durante todo esse tempo, o povo daquele país jamais se beneficiara com isso. O Brasil precisa compreender bem essa situação nas negociações com aquele país, sem tirar onda de aprendiz de imperialista. Defendia com unhas e dentes a necessária integração latino-americana, apesar dos obstáculos. Citava a integração européia como exemplo; uma região muito mais conturbada do que a nossa, palco de guerras (duas mundiais), uma babel de idiomas, embora contasse com uma população mais experiente e possivelmente mais culta.
Direitos humanos (contra a pena de morte e comércio de armas), preservação ambiental (e dos animais), reforma agrária (defendia o MST), política afirmativa de quotas e de amparo aos miseráveis sempre provocavam discussões terríveis junto aos seus interlocutores, em vista de suas firmes posições a favor desses temas, invariavelmente contrárias às deles.
Abominava governos autoritários e por isso defendia as instituições representativas de nossa democracia, os parlamentos. Ficou meio ressabiada com a onda de denúncias contra vários parlamentares. Recuou o meio de campo, mas continua uma implacável defensora dos ataques dos audaciosos entusiastas e saudosistas da ditadura. Vovó Maluca é também assim chamada pelos seus netos e crianças de uma maneira geral por força das brincadeiras que promove junto a elas. Só que no diminutivo: Vovó Maluquinha, como o personagem de Ziraldo: o Menino Maluquinho. Mas não é esse o sentido que enfoco neste texto. Maluca aqui tem a ver com sua personalidade ímpar de independência, seu descortino, sua realidade, seu realismo, sua inteligência inquieta e inquietante. “Vaca de divinos cornos a sobressair sobre a manada.” Eu sempre a julguei um modelo a ser seguido e assim me abria com ela. Por sua vez, seu modelo, sempre citado, nunca imitado, era Ghandi. Um super-homem! Contava-me ela sobre ele: julgava a amizade e o parentesco fontes de injustiça ao privilegiar pessoas, alimentava-se no que bastasse à sua subsistência sublimando o paladar e o prazer de comer, não dava muita importância à vida e nem conseqüentemente à morte, pregava o sexo frugal (!) etc. Essa perfeição, inacessível aos mortais comuns, ela usava como contra-argumento aos meus elogios rasgados sobre a sua pessoa. Não se considerava absolutamente melhor do que ninguém. Mas ninguém é mesmo perfeito! Vovó Maluca está de amores com uma figura que aportou na cidade com um novo projeto industrial, bem mais jovem do que ela e com quem está de viagem à Itália, a visitar filha e netos. Soube por interpostas pessoas que compareceu a uma audiência papal na Praça de São Pedro e que depois esticaria até Veneza em sua viagem de lua-de-mel. Só falta agora votar novamente no Lula, por certo justificando falta de opção. Sei lá, acho que esse cara com quem ela está namorando e com quem vai morar não está à sua altura. Ela merecia coisa melhor! Parece-me um conquistador barato, adventício e aventureiro. Não sei como uma pessoa tão equilibrada, lúcida, inteligente, a quem tanto admiro, caiu na lábia desse... sujeito.
Enfim, deixa isso pra lá!
(*) Um tanto longa enquanto crônica, no entanto, nem tanto conto.
Genserico Encarnação Júnior, 67. Itapoã, Vila Velha (ES)
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