Jornalego
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JORNALEGO ANO IV - Nº. 125, em 30 de Março de 2006. Conto O’ “E eu não sabia que a minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Carlos Drummond de Andrade, Do poema “Infância”. Estranho esse minúsculo título de conto! É para causar impacto, chamar atenção, aguçar a curiosidade. Não se trata do vocativo Ó, com acento agudo. Nem tampouco se refere ao gesto feito com o indicador e o polegar, grosseiro e vulgar no Brasil, cujo significado todo mundo sabe qual é, e comum nos Estados Unidos para expressar sucesso ou aprovação. Não! É um O seguido de apóstrofo. Lê-se: Ô. Em algumas línguas é comum usar certos expedientes nos nomes próprios das pessoas para designar filiação. O aqui citado O’ se usa na Irlanda para anexar o nome do pai ao nome do filho. Assim: Fulano O’Connor, O’Brien, O’Toole, isto é, Fulano filho de um Connor, um Brien, um Toole. Vem da Escócia o uso de Mac ou Mc, como em Ronald MacDonald, da mundialmente conhecida rede de fast food. Na Rússia eles usam um sufixo no segundo nome, tal como em Ivan Ivanovitch, o que quer dizer, Ivan filho de Ivan. Em hebraico é o caso do ben; veja, por exemplo, Jacob ben Yitzhak, Jacó filho de Isaac. Acredito que Osama bin Laden seja o equivalente em árabe ao ben dos judeus. O terminal son também é usado em línguas anglo-saxônicas e mesmo em escandinavas com o mesmo propósito. Robinson, que aparece acima epigrafado, quer dizer filho de Robin. Esses mesmos recursos devem ser usados em outras línguas. É sobre casos de filiação e de descendência a história que se segue. Daí esta introdução. A ficção que aqui se inicia tem laivos de realidade embora seja prenhe de imaginação. A base da história diz-se real, passaram-na ao autor. Por isso, para não se comprometer muito com a descrição, ele delega a tarefa de contar o conto (!) ao narrador, a quem, depois deste intróito, fica responsável pela condução e, se tiver, pelo seu desfecho. O mentor fica de longe, como peru de fora, sem dar palpite, para ver no que dá. A história começa na primeira metade do século XIX, numa das Irlandas, a do Norte, aquela que hoje ainda faz parte do Reino Unido, a oeste da grande ilha britânica, a que tem como capital Belfast. “Damn life” costumava praguejar o velho pai de família quando, ao voltar do trabalho, cansado e faminto, encontrava em casa, mulher e quatro filhos homens, sujos, mal-vestidos, encatarrados, narizes escorrendo, tossindo, magros, famintos como ele. Trabalhava doze horas por dia, seis dias por semana, numa fábrica de cerveja da cidade, e o que o alimentava, na hora do almoço, era uma salsicha e vários copos de cerveja quente. O salário, uma miséria. Mas a fé em Jesus Cristo era imensa. Nunca dizia sacrilegamente: “God damn it”, salvando o misericordioso Deus da causa da sua miséria. Exatamente por essa fé e sua religião católica, sofria a discriminação da outra parte da população, protestante e bem-aquinhoada na vida. Morava em um cortiço de quatro pavimentos, no último piso, de escadas de madeira, a ranger sob os passos. Duas peças compunham sua habitação, a sala e a cozinha acopladas e um quarto de dormir, que o casal compartilhava com os dois filhos mais novos. Os outros dois mais velhos dormiam tiritando de frio na sala sem aquecimento. Os cômodos estavam sempre úmidos, com goteiras perenes, por força do inclemente tempo chuvoso na maior parte do ano. Escura e triste, insalubre e fétida era aquela zona da cidade. A revolta não ia além do contumaz damn. Seguidor dos preceitos de paz da religião que professava, não recorria a nenhum expediente mais violento, que uma parte dos seus pares se valia para protestar. Alguns participavam clandestinamente de movimentos revolucionários. Os dois filhos maiores não estudavam, faziam pequenas tarefas para ganhar alguns trocados com a efígie do soberano de plantão e viviam, quando as chuvas davam trégua, em bando, armando travessuras, participando de pequenos furtos e fumando escondidos. Em alguns esconderijos se juntavam para se masturbar, em torneios para ver quem ejaculava mais longe. Uma novidade aconteceu. Um companheiro de fábrica informou-o sobre um navio cargueiro que se destinava à América e que, mediante módico pagamento, se propunha transportar emigrantes para o Novo Mundo. Tão rápido quanto pôde, com a aquiescência da mulher, depois de uma longa discussão que a fez convencer da aventura, venderam tudo que tinham, arrumaram as trouxas, incluindo mantimentos, e tocaram para o cais do porto esperando o embarque. Na travessia do Atlântico, em conversa com outros emigrantes, descobriram que o buraco era mais em baixo. A América não era a do Norte. Era a do Sul. Destino: Brasil. Os Estados Unidos eram a esperança. O Brasil, o total desconhecimento. Suas imaginações pintavam o país como lugar de índios, animais ferozes e selvas impenetráveis. Nada, absolutamente nada conheciam desse país. Mais precisamente, o destino era o porto de Santos, em São Paulo. Se o Brasil era desconhecido, imaginem esses lugares com nomes santificados. Talvez, por isso, não viessem a ser discriminados pela religião católica que professavam, quem sabe? Depois de duas dezenas de dias alojados numa parte do porão do navio, comendo mal das coisas que trouxeram, bebendo água racionada, cuidando dos choros, febres e vômitos das crianças, chegaram às águas territoriais brasileiras. Ao passarem pela costa do Espírito Santo, num mês de março, uma tempestade nunca vista em todo o trajeto, com chuvas torrenciais, vento e ondas de mais de quatro metros assolou o pequeno navio cargueiro. Isso se deu na altura da Escalvada, a ilha careca ao largo da então Guaraparim, onde se refugiavam da tormenta alguns pescadores que por ali vagavam. O navio, depois de se inclinar violentamente para ambos os bordos, várias vezes, tombou definitivamente num desses movimentos, empurrado por uma onda gigantesca. Talvez imperícia do piloto que não o tenha posicionado corretamente para se defender das vagas imensas. Ainda boiou por um período e afundou definitivamente. O tempo em que permaneceu com a carcaça flutuando, emborcada, deu margem à saída de alguns marujos, por escotilhas desimpedidas. Um deles conseguiu salvar uma das crianças da família irlandesa. Um dos menores, talvez o caçula. Segurando alguns pedaços de madeira, flutuaram no mar impetuoso que, milagrosamente, serenou depois de alguns minutos. Nadaram em direção à ilha que haviam divisado enquanto navegavam. Os pescadores, por sua vez, também testemunharam a tragédia e, quando o mar cessou seus rugidos, partiram na direção dos náufragos, tentando o salvamento. O marinheiro abraçado numa tora com um braço e segurando a criança com o outro foi um dos primeiros a ser encontrado. O narrador onipresente e onisciente ouviu de sua voz cansada e sussurrada, quando entregava a criança aos pescadores, pela borda do barco, algo que esses homens rudes não entenderam. Dissera: “God save the kid” e, colocando o menino dentro do barco, mergulhou para não voltar mais à tona. Outros poucos marujos se salvaram e foram recolhidos pelos dois barcos que, por sorte, estavam vazios, pois o mar não estava para peixes, retornando imediatamente para as praias da costa. A parte salva da tripulação, no dia seguinte, se dirigiu para Vitória, e depois, para o Rio de Janeiro ou Santos, de onde contaram com ajuda para retornarem à Europa. O menino foi adotado por uma das famílias dos pescadores, negros alforriados por seu proprietário, um senhor de terras de Benevente, por terem construído uma imponente igreja em suas terras. Habitavam a sede da comarca, Guaraparim, e se sustentavam como pescadores. Vinham, como a família irlandesa, de terras de além-mar, das costas ocidentais da África, e, mais que os europeus, sofreram o diabo na transferência transatlântica em porões infectos e insalubres, nos quais parte da carga sucumbia e era jogada ao mar. Ao assumirem nova religião e serem batizados na fé cristã, passavam a usar novos nomes de família, assim como os judeus, cristãos-novos que adotavam nomes de árvores, frutas ou outros vegetais renunciando aos seus nomes de origem. Quanto aos negros libertos, convertidos na marra ou para se safarem da opressão das autoridades eclesiásticas, praticavam o sincretismo religioso e usavam nomes dos eventos primordiais da cristandade: Anunciação, Conceição, Encarnação, Assunção, Ressurreição etc. Foi assim que o gringo branquelo recebeu muito sugestivamente o nome da família Encarnação, marcando o seu renascimento em terras do Novo Mundo, unindo simbolicamente as duas vertentes de imigrantes, os europeus e os africanos, estes ainda hoje não reconhecidos como tais. Os africanos eram considerados apenas como matéria-prima e fator de produção, no início da construção da nação brasileira. Notícia ruim se propaga rapidamente. Foi o que aconteceu quando o nosso pescador salva-vidas, ex-escravo, ficou ciente do que estava acontecendo em Queimado, no município da Serra. Da mesma forma que ele fora alforriado em Benevente, com a construção de uma igreja nas terras do seu senhor, aos escravos de Queimado fora-lhes prometida a liberdade depois da construção da Igreja dos Escravos da Lampadosa. Um padre italiano lhes prometera o cumprimento de tal promessa, depois não honrada pelos senhores da terra. Os negros se sentiram enganados e a situação se deteriorou entre os escravos e seus donos. Com o seu sentimento altruísta e de solidariedade, nosso herói levou sua família rumo ao norte, no seu barco de pesca. Passou por Queimado analisando a situação dos seus patrícios e irmãos na cor e na dor. Depois subiu o rio Santa Maria, que deságua no contorno marítimo da ilha de Vitória, e fixou sua gente em Santa Leopoldina, a partir de onde o rio não é mais navegável. Deixou ali a família, retornou descendo a corrente do Santa Maria, se integrando ao movimento reivindicatório dos escravos e participou da Insurreição de Queimado, em 1849. Com a derrota da rebelião e com a morte de vários dos seus companheiros, foge a pé, refugiando-se novamente rio acima, no reduto onde deixara sua família. Trabalhou anos com tropas de burros transportando mercadorias do norte do estado para o porto de Santa Leopoldina, para serem embarcadas para Vitória. Sempre anônimo e refugiado. Seu filho irlandês, já tendo alcançado a maioridade, pleiteia e consegue das autoridades uma gleba na periferia da cidade, por sua condição de imigrante europeu. Com a agricultura familiar, produzindo café e verduras, alcançam uma situação econômica relativamente boa. Mais tarde, com a Abolição da Escravidão, em 1888, os escravos conseguem sua libertação e os revoltosos são perdoados. Em sua grande maioria, os negros libertos foram jogados à sua própria sorte (não é o caso do nosso herói, resgatado pelo filho adotivo), aos rigores da concorrência desleal no mercado de trabalho, sem instrução, sem terras, sem os favores que outros imigrantes tiveram. Até hoje não se recuperaram totalmente. Os imigrantes brancos aproveitaram bem suas quotas e foram mais felizes. O tempo fez esquecer o nome do europeu. Usaria O’ alguma cousa? Sobreviveu tão-somente o nome da família que o adotou. Que tal seria incorporar aquele prefixo ao nome do autor: O’ Encarnação? Soa bem? Genserico Encarnação Júnior Itapoã, Vila Velha (ES)
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