ANO XII- N°
351, em 10 de fevereiro de 2014.
Resenhas
UM FILME E UM LIVRO
Ninfomaníaca (Parte 1)
Ainda não
assisti ao último filme do Lars Van Trier, que leva o nome desta
resenha. Vou tecer uns comentários antecipadamente à guisa de
introdução, simplesmente para fazer um exercício de imaginação do
que me aguarda quando assistir à primeira parte do projeto do
diretor dinamarquês em exibição em nossos cinemas. Faço tais
comentários somente considerando o jeitão do cineasta, seus supostos
pensamentos heterodoxos, tendo em conta os filmes que já vi sob sua
batuta. Melancolia, para mim, foi o ápice de sua obra, o
melhor filme.
O sexo
nos animais, inclusive nos humanos, é uma necessidade fisiológica,
que a natureza impõe para perpetuar as espécies. (“A vida é uma
doença letal transmitida sexualmente”.) Os humanos, ao se erguerem
eretos e se tornarem bípedes, ao verem exposto o corpo do sexo
oposto, desenvolveram o sentido estético do sexo. Daí porque a
função reprodutora foi suplantada pela preferência pela satisfação
dos sentidos, pelo gozo sexual. A sensualidade tornou-se companheira
e, com certeza, fato motor da atividade sexual propriamente dita. O
amor romântico é coisa muito recente que veio complementar a
atração e a prática do sexo. Na realidade, ele poderia ser
descartável, fisiologicamente falando. Seria como uma entrada ou
sobremesa que atendem muito bem ao paladar, mas não é o alimento
básico que fornece energia vital ao bom funcionamento do corpo.
Embora seja psicologicamente muito importante, não há como negar.
Ele, o
diretor, acredito, vá se fixar no lado fisiológico do tema e no
“império dos sentidos”. Não no amor, dado que este é supostamente
prescindível. O apetite sexual intenso é que produz o fenômeno da
ninfomania. Enfim, o objetivo é tirar os penduricalhos que se
colocam para ornamentar o relacionamento sexual entre as pessoas,
atingindo o âmago, o núcleo do fenômeno, digamos, o relacionamento
físico entre elas.
Vamos ver
no que dá minha experiência. Qual seja: resenhar antes de ver o
filme, confiando no parco conhecimento que tenho do diretor. Se
você, leitor, encontrar essa introdução na resenha que agora passo a
divulgar, isso quer dizer que eu acertei: bingo! Caso contrário você
ficou sem saber o que pensei antes de assistir ao filme.
Assisti
finalmente ao filme: genial! O cronista Arnaldo Bloch ao comentá-lo
disse que sempre que ia a um filme do Lars Trier torcia para não
gostar, mas, depois de assistir a ele, saía maravilhado da sala de
projeção. Eu penso diferentemente: vou assistir aos seus filmes
esperando a obra-prima que sempre vem. Aqui começa a resenha
propriamente dita. Quase que eu diria: propriamente vista. Déjà
vu! Portanto, não descartei a introdução acima. Só apurei a
forma. Mantive o conteúdo.
Do que
mais gostei foi a postura do senhor maduro, que acolheu em sua casa
a ninfomaníaca para se recuperar de um acidente. A conversa entre os
dois, que conduziu o andamento da história contada pela personagem é
de uma amoralidade total. Não é o que se esperava de um homem em
idade avançada. Não existe um mínimo traço de moralismo ou coisa que
o valha. Nada desse tipo que atrapalhe a abordagem do tema. A
associação com a minha idade foi imediata.
A
história é dividida em cinco capítulos. Um dos quais, intitulado
Jerôme, que repercute ao final, no capítulo da música de Bach,
me fez vir à memória o filme do italiano Bernardo Bertolucci, O
último tango em Paris, com Marlon Brando e Maria Schneider nos
papéis principais. Neste, o intuito de simplesmente fazer sexo do
personagem masculino, após recente viuvez, se transforma em amor com
a continuidade da prática. Ele, apaixonado, procura em sua
residência a personagem feminina que, ao não aprovar a proposta, o
assassina com um tiro de revólver.
O último
capítulo de Ninfomaníaca é maravilhoso, quando o “coroa”
explica a música polifônica de Bach à sua interlocutora.
Estabelece-se uma associação do Cantus Firmus, a principal
parte da polifonia, com o nascer do amor, quando do sexo brota o
sentimento amoroso, que vem a ser interrompido bruscamente pela
personagem principal, que diz não mais senti-lo, concomitantemente
com a interrupção da música de Bach no gravador do “senhor”, pois a
gravação não fora feita até o final. Faltou fita: o tiro mortífero
do filme de Bertolucci.
Absolutamente, nada contra o amor. Mas é bom lembrar o que poetou o
Vinícius de Moraes sobre esse sentimento: “Que não seja imortal,
posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.”
O homem que amava os cachorros
A
indicação foi do Fernando Henrique Cardoso. Não que ele seja o
próprio, ou seja, o homem que ama cachorros. Da sua sugestão fui
informado pelos jornais sobre a entrevista que dera a um programa
televisivo, elogiando o livro do escritor cubano Leonardo Padura. Já
li o livro e realmente é muito bom. É sobre ele, o livro, que me
dedico a tecer alguns comentários.
O homem
que amava os cachorros foi Ramón Mercader, espanhol a serviço da
espionagem soviética, que lutou na Guerra Civil Espanhola a favor
dos republicanos (contra Franco). Ele foi o assassino de Leon
Trotski com uma picaretada de alpinista na nuca, no México, onde o
russo se encontrava exilado do terror stalinista que então imperava
na URSS.
Trotski,
como se sabe, foi um dos fundadores da URSS, chefe das Forças
Armadas Soviéticas e que caiu em desgraça durante a ditadura de
Stalin e após a morte de Lenine.
O livro
conta as manobras ardilosas do serviço secreto soviético para
Mercader introduzir-se na casa do Trotski e consumar seu intento. O
espanhol tinha convicção de que prestaria um grande serviço à
humanidade, fanático que era da doutrina marxista-leninista e do
stalinismo. Tudo foi arquitetado para não deixar suspeita de quem
seria o mandante do atentado, escafedendo-se da cena do crime. Essa
parte final não deu certo. Ele foi preso em flagrante e ficou na
prisão mexicana por 20 anos, sem confessar quem foram os reais
mandantes, fazendo-se passar como o único responsável pelo
assassinato, por questões ideológicas.
Após a
soltura ele foi para Moscou, viu-se condecorado pelo seu feito e
depois para Cuba, onde morreu na terra de sua mãe, também fanática
pelo comunismo.
Mas antes
da morte encontra-se com o narrador do livro ao passear com seus
dálmatas russos numa praia cubana e daí começa a passar veladamente
suas memórias sobre aquele acontecimento funesto. Observe-se que o
Mercader foi para Cuba com medo de ser morto na Rússia (onde fora
condecorado como herói) como queima de arquivos, e, mesmo em Cuba,
tinha medo de ser sacrificado. Daí ser tão reticente na tentativa de
passar suas memórias.
O livro é
muito interessante porque, paralelamente à trama principal, conta as
atrocidades do governo soviético do Stalin, a vida da população na
Rússia durante o longo período da implantação da União Soviética,
com flashes da vida cubana sob o regime comunista, principalmente a
miséria depois do fim da matrona URSS.
Uma
lembrança que me veio à mente durante a leitura do livro foi que
naquela sociedade soviética fechada, sem imprensa livre, sem
multipartidarismo, portanto sem democracia, desde 1956, no XX
Congresso do Partido Comunista, Nikita Kruschov acusara Stalin pelos
crimes e mazelas do regime por ele comandado. Depois veio Gorbachov
que com seus dois livros (Perestroika e Glasnost - reconstrução e
transparência, respectivamente) jogou as pás de cal para sepultar o
regime. Eu, ao receber as primeiras notícias pela imprensa nacional
sobre o que estava acontecendo na União Soviética sob o regime do
Gorbachov, não acreditei. Pensei que fossem fofocas e invenções da
“imprensa capitalista e burguesa” estrangeira e brasileira. Quando
fui direto à fonte, lendo os dois livros, minha cara caiu. Caiu pela
segunda vez com o fim da União Soviética.
Impressionante também é que o escritor recebeu, em 2012, o Prêmio
Nacional de Literatura de Cuba pelo conjunto de sua obra, a despeito
do que contém seu romance histórico. A propósito, recebi uma dessas
mensagens que estão sobrando pela Internet com duas fotos de
personagens conhecidos: uma de Edward Snowden, outra da blogueira
cubana Yoani Sánchez. O primeiro denunciou os Estados Unidos da
grande espionagem que praticam ao redor do mundo, controlando
governos e pessoas; a segunda vem expondo as mazelas da ditadura
cubana. Embaixo das fotos lê-se: “ambos denunciaram seus países e,
ao viajarem para o exterior, um não pôde voltar. Qual deles?”
O livro
também é um romance de suspense que provoca uma grande expectativa
no leitor enquanto espera a morte anunciada (no decorrer do livro e
nos sobejamente conhecidos acontecimentos históricos).
Concordo
com o FHC neste particular: sugiro também a leitura do livro.