ANO XI - N°
308, em 20 de julho de 2012.
Crônica-obituário
DOCA
Morreu Doca, de velhice
e de saudades. Uma vida inteira convivendo com nossa filha, nos
primeiros anos de seu casamento, na constituição da família, no
nascimento dos seus filhos e na instalação de residência em local
tão distante da cidade em que nasceu e onde nós vivemos. Quando
minha filha, marido e filhos tiveram que se ausentar do Acre para
estudar por dois anos no Rio, a Doca, que por lá ficou, teve o seu
grande golpe, o que apressou sua velhice. Ultimamente, estava sem
poder se movimentar, não controlava suas necessidades fisiológicas,
chorava pedindo água e comia muito pouco.
Morreu Doca, a querida,
fiel e amistosa cadela, apesar de ser de uma raça bravia – fila
brasileiro –, caçadora de índios e de negros escravos no Brasil em
tempos idos. A querida Doca dos meus queridos distantes. Está
enterrada na chácara da família, com lápide e epitáfio: “Uma
cachorra muito querida”, segundo propôs um dos filhos pequenos.
Não gostei nunca de
cachorros em apartamentos, onde sempre moramos, e, principalmente,
de cuidar de animais. Assim proibia aos filhos de tê-los, embora
eles sempre quisessem. O que eu mais detestava era o latido dos
cachorros, ter de passear com eles e pior, catar seu cocô, uma vez
que filhos menores não fazem isso mesmo. Agora, ambos moram em Rio
Branco, em casas com grandes quintais, com seus cachorros. Não
obstante, sempre respeitei os animais, principalmente agora, na fase
madura e crepuscular de minha vida. Haja eufemismo para significar
velhice!
As duas vezes em que
nossa filha ficou prenha, vindo a parir belos filhotes, coincidiram
com duas gravidezes de Doca, que deu à luz dezenas de bebês caninos.
Fiquei com a impressão de que, nesses períodos, reinava no ar, entre
elas, o compartilhamento do mesmo sentimento de maternidade. A
diferença fundamental entre os processos reprodutivos nos mamíferos
(seres humanos e animais) é semântica; daí porque, propositadamente
troquei as palavras usadas para cada situação no intuito de mostrar
a igualdade entre elas.
Um acontecimento
significativo se deu quando Doca teve sua primeira ninhada. Quando
estava para dar à luz o primeiro filho, isolou-se no fundo do
quintal, até que foi achada escondida por trás de umas tábuas. Meu
genro tomou o cãozinho nas mãos e, seguido da mãe ainda em trabalho
de parto, levou-os para a sua casinha no início do quintal. Acho que
ela pensava que estava tendo alguma indisposição, como se fosse uma
diarreia e, portanto, fugira para um esconderijo. A partir de então,
ela se deu conta que estava sendo mãe e assumiu o seu papel,
amparando os filhotes (foram 16 ao todo), lambendo-os, engolindo a
placenta, limpando o chão da sua casa e acolhendo-os às tetas. Um
verdadeiro milagre da natureza!
Outro fato que me
marcou, na vida desta cadela de raça tão violenta, mas devidamente
socializada, aconteceu quando estávamos todos reunidos conversando
na varandinha de trás, que dá para o quintal. Ela ficara por ali nos
observando a tomar o café da manhã. A menininha do casal vizinho
surgiu comendo um suculento sanduíche. Ela abocanhou a mão da menina
com o sanduíche. Acontece que não fechou a bocarra. Só o fez quando
o pai, apavorado, depois do grito da pequena, retirou a mão da filha
das enormes fauces da cadela, deixando lá, por inteiro, o sanduíche,
que foi imediatamente engolido. Nada aconteceu com a criança, graças
ao descortino do animal.
Doca, quando saudava
minha mulher e brincava com nossa filha, colocava as patas
dianteiras nos ombros delas e assim ficava maior do que elas. Quero
acreditar que reconhecia nelas o seu sexo.
A morte de Doca e esses
comentários vêm também na esteira do que se disse na Convenção sobre
Desenvolvimento Sustentado (Rio + 20), que aconteceu no mês passado
no Rio, colocando ao lado das preocupações ambientais, os cuidados
com os oceanos, florestas, cursos de rios e o gênero humano, o papel
fundamental dos nossos irmãos animais, com seus milhões de formas de
vida, infinitamente mais ricas e diversificadas do que as vidas
humanas, que habitam no único planeta vivo do Universo. Como diriam
os advogados: salvo melhor juízo comprovado.
Com o anúncio da morte
de Doca, a família toda sentiu muito e minhas retinas cansadas
ficaram rasas dágua. Haja clichês, eufemismos e metáforas para
simplesmente dizer que o velho chorou.
Dizia Fernando Pessoa no
Livro dos Desassossegos: Não é fácil distinguir o homem dos
animais. As vidas humanas decorrem na mesma íntima inconsciência que
as vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os
instintos dos animais, regem, também de fora, a inteligência do
homem, que parece não ser mais que um instinto em formação, tão
inconsciente como todo instinto, menos perfeito, porque ainda não
formado.
Por essas e outras é que
pensei num epitáfio mais erudito, mais cabeça, do que o sugerido
pelo meu neto para a lápide da Doca (sem a mínima intenção de minha
parte em mudá-lo, para não macular a manifestação espontânea de tão
puros sentimentos e a criação infantil).
Seria assim: “Aqui jaz um ser muito
querido”.
A propósito, sugere-se a (re)leitura
do número 222 – O Deus dos Animais.