ANO XI - N°
303, em 30 de maio de 2012.
Opinião
ADMIRÁVEL MUNDO
NOVO
"É preferível
civilização ao desenvolvimento."
Cacá Diegues,
cineasta (citado de memória).
Começo a escrever este
texto no primeiro dia de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal,
de uma ação de inconstitucionalidade das cotas para afrodescententes
criadas pela Universidade de Brasília no ano de 2004. A ação foi
demandada pelo Partido dos Democratas (DEM). A iniciativa daquela
universidade vem sendo seguida por outras tantas instituições de
ensino superior, portanto uma decisão sobre o assunto servirá de
exemplo para todas, criando jurisprudência a ser seguida em todo o
país. Até agora conhecemos somente o voto do relator: pela
improcedência da petição, isto é, a favor das reservas ou das cotas.
Nesse mesmo dia, leio o
artigo do jornalista Elio Gaspari sobre o assunto. Os trechos entre
aspas, neste parágrafo, são de sua lavra. Trata-se de “um debate que
durou mais de uma década e, como outros, do século XIX, expôs a
retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o
prelúdio do fim do mundo.” Essa preocupação, vinda daquele pedaço,
se espraiou quando o Parlamento discutia a Lei de Ventre Livre e,
mais tarde, quando se tentava libertar os sexagenários escravos.
Quanto “às cotas seriam coisa para inglês ver, estimulariam o ódio
racial e baixariam a qualidade dos currículos das universidades”.
“Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.” “Passaram-se
dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para
afrodescendentes e hoje há milhares de negros e mulatos exercendo
suas profissões graças à iniciativa.” “O fim do mundo ficou para a
próxima.” “No século XXI, como no século XIX, todos os grandes
órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas.” “Ressalve-se a
liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.”
Como se sabe, o Supremo
Tribunal Federal considerou constitucional, por unanimidade de seus
membros, o regime de cotas na Universidade de Brasília. As cotas, ao
que me parece, se estendem para estudantes de escolas do ensino
público no ingresso às universidades; mas não sei se isso está no
mérito da questão ora julgada. Outro melhoramento imprescindível é a
extensão das cotas de cunho social para beneficiar as classes de
renda baixas. Tem muito branco pobre habitando as periferias das
cidades.
Muito se argumenta que o governo
deveria melhorar suas escolas públicas. Nada contra. Afinal, é muito
difícil encontrar nas Universidades Públicas estudantes que vieram
de Escolas Públicas. Contudo, as iniciativas das cotas e da melhoria
do ensino público não são mutuamente exclusivas, elas podem conviver
lado a lado, até um dia oxalá não se precise das cotas.
O Supremo Tribunal Federal vem
assumindo memoráveis posições: a favor da reserva indígena de Raposa
Terra do Sol em Roraima, mais recentemente reconhecendo as terras
dos pataxós no sul da Bahia, utilização de células-tronco, uniões
homoafetivas, descriminalização do aborto para fetos anencefálicos,
enfim, o órgão vem honrando o seu nome (Supremo) a despeito de
pequenas troca de farpas entre seus membros as quais só demonstram o
processo de mudança por que passa a Corte em consonância com as
transformações da Sociedade.
Outros assuntos tabus
vêm sendo debatidos pela sociedade, principalmente a
descriminalização do aborto de uma maneira geral. Em alguns
segmentos de nossa sociedade existe forte oposição às políticas de
reforma agrária, um novo código florestal ecologicamente mais
consistente, salário-família, seguro-desemprego, “minha casa minha
vida”, inexistência de pena de morte, política indigenista e por ai
vai a discussão, com os mais ardilosos argumentos para a manutenção
do statu quo, com os quais não concordo embora respeite os
que assim pensam.
Alguém, por acaso, tem
alguma dúvida de que todas essas situações até aqui citadas serão
concretizadas num curto período de tempo? Quem viver verá!
Lembram-se quando se
discutia o divórcio? Seria o primeiro passo para a dissolução da
família e outras besteiras mais. E a instituição do voto feminino e
do analfabeto? Quanta celeuma! Ainda resta uma importante discussão
num estado laico: a proibição de símbolos religiosos em espaço
públicos governamentais.
Voltando às proteções e
cotas, para todos e tudo na vida existem cotas. Desde o bem-nascido
que tem boa alimentação e educação familiar, bons colégios, bons
apadrinhamentos etc. O extinto Fundap no Espírito Santo, os
benefícios fiscais para as empresas são cotas. O amparo dos governos
às crises financeiras internacionais de 2008 e 2011, o Proder
federal no governo do FHC etc. são cotas. Assim caminha a
humanidade! Cotas, protecionismos e subsídios existem aos milhares
nas várias ocupações do homem. É só olhar com um olhar mais
perspicaz. Desde que bem administrados, nada contra.
A sociedade brasileira,
a despeito dos grandes avanços, ainda é homogênea e hegemônica:
branca, masculina, heterossexual (fortemente homofóbica), portanto
excludente. Ela precisa assumir sua heterogeneidade, sua
multirracionalidade, a igualdade dos sexos, e despir-se de muitos
outros preconceitos de toda ordem, para se tornar mais igualitária
assumindo a sua pluralidade.
As atuais políticas de
ação afirmativa são importantíssimas e estão desempenhando um grande
papel. Alguns argumentos contrários focam erros que acontecem na
implantação dessas medidas. Isso é natural embora indesejável.
Outros falam em deficiências culturais dos cotistas quando entram na
universidade; algumas delas (ex.: UFRGS) estão oferecendo aulas
extracurriculares para diminuir ou acabar com essas deficiências. As
aulas de português parecem-me são as mais solicitadas. Isso é de
competência das universidades: diagnosticar e tratar esses
descompassos.
Com os avanços obtidos
em todas essas áreas estamos, todos nós brasileiros, de parabéns.
Acredito que falta ao
nosso país um acerto na sintonia fina em nossas vidas. Os princípios
básicos estão sendo consolidados. Um comentarista, outro dia,
criticou a falta de uma grande obra governamental para marcar o
governo atual. Não acho isso tão necessário assim. Afinal, já
existem a transposição do Rio São Francisco, as construções de
importantes hidrelétricas, a produção do pré-sal, a construção de
novas refinarias, passando pela organização da Copa do Mundo de 2014
e das Olimpíadas de 2016 e as obras do PAC, a despeito dos
obstáculos encontrados. Como disse, acho que há necessidade de
acertar a sintonia fina em áreas como: infra-estrutura em geral,
educação, tecnologia, segurança pública, reforma fiscal, controle da
taxa de juros, reforma política, combate à corrupção e às drogas,
eficiência administrativa, melhores transportes públicos etc. Tendo
como base aqueles régios princípios, tenho certeza que no
decorrer do processo democrático em que vivemos, eles se decantarão
por toda a estrutura administrativa dos três níveis de poder e esses
gargalos serão, senão resolvidos, atenuados.
Este meu entusiasmo pelo
atual estado da arte no Brasil não se deve a nenhum governo em
especial. Credito-o ao processo democrático em que vivemos após o
período ditatorial e, em especial, à Constituição Cidadã de 1988,
tão criticada nos seus primeiros anos de vida. Afinal, tivemos na
presidência um dos mais renomados intelectuais brasileiros da
atualidade, um ex-operário e, finalmente, uma mulher. Que maravilha!
A despeito da privataria tucana e do mensalão do PT. E
nunca esquecendo: a democracia não é um produto pronto e acabado;
ela é um processo que não tem fim. A mídia geralmente prima por uma
urgência republicana e um excessivo apego ao imediato, quando se
sabe que, neste particular, natura non facit saltus (a
natureza não dá saltos).
Bem mais recentemente
foi instituída a Comissão da Verdade para apurar os crimes políticos
cometidos na segunda metade do século passado e promulgada a Lei de
Acesso à Informação. Quanto à primeira, é vedado o julgamento dos
implicados durante a ditadura militar por força da vigência da Lei
da Anistia, ratificada pelo STF em 2010. No que diz respeito à
última iniciativa é sintomático que as organizações públicas e
privadas ainda não estejam totalmente preparadas para o seu perfeito
atendimento, mas com o andar da carruagem e a pressão dos cidadãos,
por certo chegaremos a bom termo.